segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Ainda hoje!

Volto em Janeiro, quando o ano começar.

Porque não hoje? Não te reconheço nestes rituais.

Nem eu. Obrigada pelas visitas, passarinho. Prometo que volto, que seria de mim sem ti? Deixo-te o que leio. E hoje, mesmo mesmo antes de dormir, que há um momento breve em que sei que finalmente me irei entregar ao sonho, acontece-te o mesmo? Uma confiança tranquila, rodeada de lençóis e do cobertor pesado, e de todos os sons e dos olhos da gata a fixarem-me, todos os dias me fixa quando me deito, como se também ela estivesse espantada com o espectáculo. Dizia que hoje, ainda hoje e não apenas em Janeiro, guardarei nesse instante a imagem de ti, com os teus lençóis e o teu cobertor e os teus sons e todos os teus bichos, passarinho meu, e com as tuas palavras, que nesse momento serão as mesmas que as minhas, promete-me que sentes as mesmas palavras ao mesmo tempo que eu, apesar de nem teres de prometer, mas promete. E àquela hora, tu sabes qual é a hora, não é quando se ouvem as 12 badaladas, que esse momento é de correria, é já no fim da história, quando ela encontra o sapato. Nesse instante em que quase quase durmo mas ainda não, eu saberei que através das nossas mesmas palavras estarás no meu lençol e no meu cobertor e também nos olhos fixos da minha gata.


Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra.

[…]

Isso que fica aí não são memórias alinhadas. Não têm essa pretensão. São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um acontecimento – e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se desenrolou, interessou-me a cor, um aspecto, uma linha, um quadro, uma figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer – desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas. O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo…

[…]

Há horas em que as coisas nos contemplam, e estão por um fio a comunicar connosco. Às vezes é um nada, um momento de êxtase em que distintamente ouvimos os passos da vida caminhando.

Raul Brandão, excertos de Memórias, 1918

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O capuchinho vermelho da Branca de Neve

Paula Rego - Swallows The Poison Apple

Branca de neve, é agora que apareces!

BN: Mas eu não sei a minha fala.

Então branca? Essas indicações foram-te dadas há muito tempo.

BN: A culpa não é minha, sou inocente por natureza. A história vinha com algumas falas apagadas. Estava ali a comentar com o lobo se seria engano, e a nossa interpretação é de que talvez tenham feito de propósito.

E qual seria a função desse propósito?

BN: Ora, o improviso dá sempre um toque de realismo. Além disso esta cena entre mim, a capuchinho e o lobo é bastante estranha. Onde queres exactamente que me coloque?

Onde anda a capuchinho? Vocês andam desvairados, e eu só consigo concretizar as cenas a ver-vos todos juntos. Assim é impossível, peço-vos um pouco de disciplina.

CV: Oi! Peço desculpa, fui visitar a minha avó num instante, porque não sabia até que ponto as filmagens de hoje iriam afectar a nossa relação. Tem calma, passam apenas 15 minutos da hora que pediste, e ainda tive de fazer os bolos. Disseste-me que fazê-los eu era um pormenor importante para activar o lado emotivo da história. Venho ansiosa, já reparaste que esta cena tem poucas falas definidas? Como fazemos?

Começa a Branca, que assim é mais fácil para ti, restringe-te as opções de resposta. Nesta cena estão a falar frente a frente, e o lobo está ao teu lado, sentado, também em frente a ela. Branca, não te preocupes, diz o que te passar pela cabeça, e a história logo se irá construindo. Comecem.

BN: Passou-se muito tempo. Muita água correu debaixo da ponte.

CV: É verdade.

BN: Canta-me alguma canção antiga…estou carente.

CV: pela estrada fora, eu vou bem sozinha…levar estes bolos à minha avozinha.

BN: Play it, lobo. Play as time goes by.

CV: O quê?! Ouve, estou um bocado cansada destes teus protagonismos, branca de neve. Sabes bem que o lobo não sabe tocar nem cantar. Chama um dos teus anões se quiseres, mas não admito que faças pouco das personagens da minha história. Além disso não és coerente, pediram-te uma personagem boa, ingénua e inocente. E tu lobo, não tens nada a dizer na criação do clímax desta história?

BN: ora, e tu?! Tão independente e protectora, quando és apenas uma criança! Achas real e coerente saberes desenvencilhar-te de um lobo no meio desta floresta?!

CV: Por não ser real é que sou coerente, essa é a nossa função. Explicaram-nos na formação quão importante era a não ambivalência das personagens. Aproveito a tensão para te dizer que vi o príncipe há pouco com a Bela adormecida.

BN: Oooooh, com a Bela…

CV: Toma um bolo dos meus, não aguento ver-te nessa tristeza. Sou vingativa mas tenho bom fundo. E aqui começa o diminuir da tensão, teremos apenas de arranjar um final feliz. Então Branca, engasgaste-te?! Branca! O pico da tensão era o anterior! Lobo, rápido, faz-lhe a manobra de heimlich. Oh deus, eu juro que não era este o rumo da história, demorei horas a colocar as passas nos bolos, simplesmente porque a avó me disse que andavam a saber-lhe ao mesmo havia demasiado tempo. Foi por isso com amor, Branca, foi um acaso de uma passa amorosa. É incrível como a história se repete à conta dos acasos. Branca, antes que adormeças de novo na floresta tenho de te contar, aguenta-te na manobra dois segundos para que te conte que o príncipe da Bela não era o teu, por favor perdoa-me. E adormece descansada que tenho a certeza que ele irá salvar-te. Lobo, ajuda-me a terminar com tudo isto, que julgo que a cena ficou demasiado longa e eu sinto-me rigidificada nesta triangulação que afinal já é uma hexagonação, se contarmos com as personagens referidas mas não presentes. E não conto com os anões.

Lobo, antes de cortarmos precisamos de um improviso teu, a capuchinho tem razão.

L: Que poderei eu dizer? Julgo que os problemas de três meras personagens não contam muito neste mundo louco. Um dia irás entender, capuchinho vermelho. Entretanto, estou de olho em ti, miúda.


segunda-feira, 23 de novembro de 2009

domingo, 8 de novembro de 2009

Como uma chuva que sabe o que quer



Diz rápido, estou quase quase a embarcar.

Falei só para perguntar como estavas.

Está imenso trânsito hoje.

E também te queria falar dos espelhos.

Como? Podes repetir? Ouves o barulho das hélices? Nem acredito que estou quase a embarcar.

Queria falar-te sobre os espelhos e sobre o cinema. Surgiu-me a ideia de que talvez a vida espelhe o cinema, e não o contrário. Embora o cinema apareça depois, mas é aquela questão do tempo de que falávamos outro dia, lembras-te? Disseste que fomos nós a inventá-lo, e pensei que, se realmente é assim, talvez o que venha depois possa vir antes.

Ouço-te realmente mal, mas não te preocupes com o tempo, este é o meio de transporte mais seguro, aprendi no curso. Estou a apertar o cinto. Que emoção.

Digo rápido rápido, para tentar corresponder ao nosso tempo. Ontem, enquanto a água escorria pelas minhas costas, tentava entender qual a imagem de mim que via reflectida num espelho imaginado. No fundo faremos isto a todo o instante, uma imagem de nós a cada momento. Se tentares captar esse instante, como quando tiras uma fotografia ou quando fixas o teu olhar no espelho, poderás ter esta sensação de estranheza, porque no momento seguinte já não serás aquele, entendes? O nosso espelho mental é tão automático que nos permite não distinguir os vários slides, como no cinema. As várias fotografias de mim ficam ilusoriamente unidas na minha cabeça.

Parece de facto um sonho, o avião vai mesmo levantar. Fasten seat belts. Vou desligar!

E entendi por que razão a palavra espelho terá aparecido ao lado da palavra cinema. Ou ao mesmo tempo, como preferires, eu prefiro ao lado porque foi a primeira imagem que me apareceu, mas desculpa que assim perco-me e eu sei que tens pouco tempo, apesar de já te ter dito que ele é independente de nós. Pensei então que a nossa vida espelha o cinema, num contínuo que não pára, por contraposição àquela nossa fotografia. Porque feliz ou infelizmente, dependendo do conteúdo, o disparo dos neurónios por vezes é tão forte que imprime a fotografia dúzias de vezes, a vida toda condensada num momento sem tempo. Estou extremamente impaciente porque isto de colocar pontuação nas ideias demora, e daqui a duas horas tenho coro e ainda não comi. Ocorreu-me entretanto, e cá está outro advérbio de tempo, que se os espelhos podem funcionar todos ao contrário, talvez o filme lá de fora espelhe o de cá de dentro, e pergunto-me: o que espelhará esta chuva miudinha sobre mim? Coloquei mesmo um ponto de interrogação porque a chuva que cai ainda não é a suficiente para espelhar pontos finais, demora até que a terra assente e fique unida outra vez. É tão bom quando sai aquela chuva de rompante e nos dá a sensação segura duma chuva que sabe o que quer. Digo-te tudo isto num repente, não apenas por causa do tempo e do teu avião, mas para ver se é a pontuação que me impede de chegar ao que quero captar, que é aquele instante exacto em que a terra bate na chuva e eu posso finalmente apertar bem o cinto e dizer, colocando um ponto final no fim da afirmação: aí vou eu outra vez. Ligo-te quando chegar.






segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Blondina


Menina!

Peter Pan! Oh Peter querido. Passei pelo supermercado, porque me faltava pasta de dentes. Nunca imaginei encontrar-te por aqui. Que saudades.

Reparo que lês a história da Blondina. Advirto-te que derramarás lágrimas, no estado em que te encontras. Que fazes à história?! Porque colas estas imagens de pastas de dentes no meio do diálogo entre a Blondina e o Rei Benigno?

Para lhe dar um pouco de realismo, Peter. Ou talvez mesmo para confundir-me. Sabes como gosto de o fazer. Li algures que tem um efeito terapêutico, bloqueia aquela nossa lógica do hemisfério esquerdo. Peter, sabes que a cara e as mãos são as partes do corpo mais representadas no cérebro?

Não fazia ideia.

E o bolbo raquidiano é responsável pela manutenção das funções involuntárias.

Tais como?

Como a respiração, ou a secreção lacrimal. Olha, mudaram-nos de sítio! Nota que estamos já em minha casa. Diz-me ela que lhe surgem vários contextos, e que como personagens temos apenas de nos adaptar. O que vale é que voas, senão seriam tremendamente difíceis estas mudanças. Pan, suspeito que é o seu hemisfério direito que predomina agora, são aqueles momentos em que lhe custa dar nomes às coisas. Pensando bem, já nem sei bem o teu nome, Peter. Pergunto-me porque me terá posto a ler a Blondina.

Diz-me ela que se quer lembrar de todas as personagens.

Oh Peter, eu sabia, vê tu em que estado pôs ela de repente este supermercado, os livros todos espalhados, a corça branca no meio da carne, o pêlo de arminho nos queijos e os mais belos contos de grimm rodeados de bolachas. Muito gosta ela de bolachas, e vendo bem é uma palavra tão redonda. Peter, aguenta-te na zona dos iogurtes por favor, que eu prometo que te vou buscar no meio de tantos lacticínios. Rebolam os pacotes de leite, e apesar de serem paralelepípedos julgo que ela os pode pôr a rebolar, e eu apenas me pergunto porquê tamanho filme, meu deus, porque terá ela de colocar-nos a nós a sentir desta maneira, será que não imagina como fico cansada no final?! Tudo para que se tranquilize a colocar histórias dentro de histórias e personagens dentro de personagens?! Atenção, eu sou apenas uma menina! E ele é o Peter! Apelo agora à presença da Dra Sininho nesta história, porque eu sinto que o meu bolbo raquidiano poderá tomar conta de mim e eu involuntariamente me autonomizar dela e fazer o que me apetece, que afinal tem sido muito tempo a fazer esta personagem. Mas Peter, aconteça o que acontecer, quero que saibas que sou eu que te amo, não foi apenas ela que me pôs a amar-te. E que aconteça o que acontecer podes estar seguro de que te irei buscar aos iogurtes.


sábado, 17 de outubro de 2009

Azul marinho (clique aqui)

Psiiiiu. Estás a dormir?

Não.

Em que pensas?

Estava a pensar que esta bola de Berlim estava mesmo boa.

Escreves? É tarde.

Sabes que gosto de escrever a estas horas.

É dramático?

Ainda não sei, mas julgo que não.

Mas tens as mãos suadas.

É verdade, mas sabes que não bastam as sensações corporais. A música é de certa forma tranquila.

Dizes isso porque não entendes a letra da canção. E a cor? Qual é a cor?

Talvez azul, mas marinho, como aquele azul da Córsega.

Assim chamas outras personagens para a conversa. E a imagem?

Sabes que é estranho? Porque a imagem é de prédios. A rua vazia, e os prédios cheios de gente, de um lado para o outro de um lado para o outro, agarram nos pratos e nos talheres e há também os fornos cheios de comida quente. E nessa imagem eu estou cá fora e vejo-os a todos, e de repente tenho milhares de olhos. O olho é um órgão extraordinário, não te parece?

Quais são as emoções associadas?

A quantidade de perguntas faz-me mudar de contexto, dra. E tenho de dizer-lhes isso de alguma forma, para que me possam seguir. Gostava de não falar sobre as emoções, ou pelo menos deixá-las para o fim, tenho medo de varrer assim o pré-frontal, e desatar a chorar aqui e inundar-lhe o consultório. Sabia que a composição química das lágrimas muda conforme a razão por que choramos? E se depois elas me invadem, e de certa forma me embalam, e não tenho tempo de voltar ao lugar seguro? Porque tudo isto é muito rápido, e muitas vezes sinto que o tempo cronológico não coincide com o meu. Ainda estou a processar o séc. XVIII e já estamos no XXI. Imagino-me com aqueles vestidos e ainda sem existirem prédios cheios de luzes, quero aqueles fatos mais um pouco, só mais 5 minutos, não me quero deitar já. A imagem agora saltou dra, estão a puxar-me para a frente e eu cravo os pés e dobro os joelhos e faço força para trás e digo ao tempo, que é ele que me está a puxar, digo-lhe que sou lenta. Ele responde-me que deixar-se passar faz parte da sua definição, e tem razão, que eu fui confirmar ao dicionário. Inicio então um novo diálogo com o tempo, porque são eles, os diálogos, que me dão o presente, e eu preciso tanto tanto dele. E das bolas de Berlim e da minha imagem a rir-me no jardim do campo grande, e quando ela aparece é um bocadinho de presente outra vez, e neste caso presente é também uma oferta, ofereço-me essa memória e sinto-a agora, e sentir já são emoções, não ponho pontos para não me perder pelo caminho porque estamos mesmo mesmo quase dentro do sistema límbico apesar de ser através das palavras. Não percebo a letra da canção mas tenho a certeza que ela diz isto que sinto, não poderia ser de outra forma. Ouço-a repetidamente para compor a memória, que às vezes anda descomposta. Só mais 5 minutos dra, que é o tempo de ela tocar, e de chegarmos ao passado no presente. Eu avisei-a de que ia inundar-lhe o consultório.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Esquadros

Boa tarde.

Boa tarde.

Queria uma folha de papel cavalinho, por favor. E um lápis.

Que número, menina?

Queria um lápis para desenhar.

Quer desenhar com traços largos ou mais finos?

Largos, para ver se não me perco em perfeccionismos. No entanto, se usar um traço mais largo talvez tenha de ser mais precisa. Como as palavras, vão entrando umas dentro das outras, o que faz com que a última seja mais abrangente, mas ao mesmo tempo terá de significar exactamente aquilo que eu quero dizer, e nesse sentido é mais fina. Desculpe, estava aqui a pensar, e se calhar é melhor um lápis com um número mais baixo.

Leva um 2B.

Histórias tão cheias que ficam como esta folha de papel cavalinho em branco, embora possa parecer estranho o conceito. De um branco cheio, entendes? Absolutamente cheio de pormenores. Se experimentares e começares a apagar, começarão a aparecer formas. É verdade, bicho! E a certo ponto são já tantas que se torna confuso. Tantos traços, meu deus, e aqui faço um trocadilho entre os traços do lápis e os traços característicos das pessoas. Bombardeios de personagens com as mais variadas formas, e elas surgem todas sempre ao mesmo tempo, todos sabemos que nuns dias o telefone nunca toca e nos outros não pára, cheio de novas informações ou antigas que se actualizam, e nós a dizer para dentro ao universo que afinal pedimos mal, queremos sossego outra vez. Desculpe, também queria uma borracha.

Verde ou branca?

Branca. Tudo branco e sossegado, quietas, ordeno! ou desligo o telefone. Mas elas saltam-me do papel, quase independentes da minha borracha branca branca. Os meus desenhos da escola ficavam sempre todos esborratados, sabes quando o carvão se espalha? porque às vezes sou trapalhona e a minha mão passava sem querer por cima do que já estava feito, e eu depois tentava apagar o esborratado e ficava sempre com menos um bocado da forma original. Pior ainda quando as formas originais eram geométricas, porque se notava mais o sujo. Tem esquadros baratos?

Estão nesta montra. Vou atendendo este senhor enquanto decide.

Então, quando o branco já está muito apagado e a folha de papel cavalinho está quase preta de tanto carvão, começamos de novo a apagar aquelas formas todas que surgiram, como um escultor a retirar pedaços da pedra. Vê, os dois processos são iguais mas com consequências opostas. Será que andaremos sempre nisto vida fora, apagando, apagando, ora o preto ora o branco? Eu adoro, mas é bastante cansativo, e às vezes não sei qual dos processos hei-de escolher. Terei de me calar agora, porque senão esta folha fica muito cheia de caracteres, que aqui é quase o mesmo que dizer letras, há apenas um número pelo meio. E depois eu terei de ir retirando palavras, não imaginas quantas vezes já carreguei no delete durante este tempo todo. Foi tanto tanto tempo que o sr. já atendeu as outras pessoas todas. E eu ainda não me decidi.


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

RNA mensageiro

Não fazia ideia, amor. Porque não me contaste tudo isso antes?

De alguma forma pensei que soubesses.

Como saberia?

Perdes-te tantas vezes longamente a observar as minhas costas…Pensei que por cada segundo que lá passas me observasses a um nível cada vez mais profundo, e pudesses entender sem to dizer. Primeiro olhas as costas por inteiro, e depois a omoplata saliente, e depois o pescoço, e depois estes pequenos cabelos que temos nesta zona, ao pé da orelha.

São pelos que tens aí, não são cabelos.

E depois este bocadinho de pele. Quando observamos bem, assim com olhos de quem quer compreender, vêem-se uns sulcos, que não chegam a ser as paredes das células, mas aqui dá-me jeito dizer que sim, porque me interessa a imagem das minhas células a tocar-se. E depois, se olhares com a outra visão, tens aqui de treinar a tua atenção, estou convencida que vês as minhas moléculas, e dentro delas o núcleo, onde vês não apenas o meu ADN, mas também aquelas polimerases que fazem a transcrição, que consiste na síntese de RNA mensageiro. Este processo, este último, é universal. Nota bem, de entre todos os conteúdos de que te falo, é o mais micro que é universal. A nossa tendência será a contrária, não? De olhar para o universo para encontrar o universal. Achas que posso ficar aqui para sempre, colada à célula da pele do meu pescoço?

Para sempre não, há que ser flexível. É o movimento que é importante, a tua atenção deve estar no salto. Para que possas sempre regressar.

E se me perco na ida?

Puxas-te entretanto, mas suavemente. Sem julgamentos. Começarás a sentir que decides. Quando vais, e quando ficas. E bem sabes como sentires que escolhes é importante na transformação da história.

Porque aprendemos a não escolher?

Talvez para reagirmos rápido.

Não será bom então esse automatismo?

Terá sido. Num outro contexto. Aquele que me faltava para compreender o teu núcleo. Porque não me contaste tudo isso antes?

Porque pensei que soubesses. Mas lá no fundo, talvez fosse para que me perguntasses, amor.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Relatividade especial

Dra Sininho…

Diga.

Posso fazer-lhe uma pergunta indiscreta?

Pode.

O seu cabelo é mesmo louro?

É importante para si?

Qualquer possível alteração neste momento é importante para mim. Conhece-me, sabe como são estas fases, é muita informação para gerir. Vou-me então certificando, pé ante pé.

São fases difíceis para todos.

Essa estratégia é de normalização. Mas sabe como terá de ser equilibrada com a ideia da minha especificidade, mesmo nas fragilidades. É engraçado, é importante sabermos que somos todos frágeis da mesma forma, mas que até nisso somos únicos. Sou especial para si, dra sininho? Apesar das minhas personagens serem afinal as mesmas que as dos filmes de animação?

Claro. As personagens são as mesmas mas o todo é diferente. O que acha que a fará sentir-se especial comigo? Ou o que lhe faltará para que tal aconteça.

O que fará que as mesmas partes criem todos diferentes? E agora inverteu o processo, dra. Sendo essa pergunta genuína, pergunta-me directamente a minha opinião. Julgo que são coisas pequenas. Desculpe, mantemos conversas paralelas, o que criará alguma confusão. Mas assim condensamos. Se fossemos separar os vários temas poderíamos ocupar mais do que o tempo estipulado, e mais do que o espaço de uma página, e sabe que espaço-tempo é aquele sistema de coordenadas para o estudo da relatividade, geral e especial. Vê como os temas se encaixam sem sequer darmos conta de como isso acontece? Senti-me especial, por exemplo, quando vi as suas lágrimas ao descrever-lhe aquele encontro da Betty Boop com o monstro das bolachas. Na altura balbuciou “que engraçado”. Julgo que sorria também. Mas as suas lágrimas, dra sininho, foram o factor decisivo. Talvez por me terem indicado que naquele momento vivia, de facto, a minha história.

A junção das personagens num todo é sua. Não será criação de uma personagem. Antes algo mais essencial, mais pequeno, mais simples. E porque acha que as lágrimas davam indicação que lá chegava? Ao centro.

Acha que o todo não é uma personagem que contém todas as outras, dra? Hoje está bastante afirmativa. Eu não sou apenas mais uma personagem? As lágrimas mostraram que os seus neurónios empáticos se ligavam à minha história através de um qualquer fio condutor. Aqueles de que falava há um ano atrás e que segundo as notícias são afectados pelos jogos de vídeo. Sabia? As crianças que jogam muito choram menos com as histórias dos outros. E de repente, após as lágrimas, era já a Sininho da minha história. Como sabe? Sobre o todo que não é personagem.

Talvez não saiba. Será outro tipo de neurónios a dar conta que existe sem personagem? Mas além de todas as dúvidas prometo-lhe que, para si, o meu cabelo é mesmo louro.





quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Exposição

Estranho-te. Que se passa?

Até eu estranho o meu silêncio.

Alguma razão concreta?

Julgo que a função da exposição anda a mudar. Mas ainda não terá adquirido nova forma.

Não entendo.

Lembras-te quando me disseste que te contava os pormenores todos? Há já muito tempo.

Não me lembro de todo.

Nessa altura falava que nem uma desbragada. Contava-te o que me tinha acontecido no autocarro, quando quase deixei de respirar ao engasgar-me, ainda me lembro tão bem da mala da escola nesse 8ºano. E que o saco do lixo se tinha rompido no elevador, com o senhor do 4º andar a olhar para mim e para o chão alternadamente. E como tinha acordado nesse dia com um murro no estômago, depois daquele sonho que tinha tido com o Peter Pan a escovar-me o cabelo, que ia caindo, caindo, e ele a dizer com escárnio que o meu cabelo era fraco. Que fraco é o teu cabelo, que fraco é, dizia assim. Eram entretanto muitos Pans, todos a tocar flauta. E tu disseste-me que todos aqueles pormenores não interessavam. Passei a prestar atenção.

A quê?

Aos teus gestos e às tuas palavras. Eles protegiam-me, e não poderia correr o risco de voltar a sentir aquela mágoa. Os meus pormenores eram importantes para mim. Fui metendo as palavras todas para dentro, as minhas e as tuas, e os teus gestos, e a tua pele. Foram muitas palavras e muitas peles e muitos cheiros, e até os cheiros foram engolidos, não foram apenas cheirados, e ficaram todos juntos num silêncio imobilizador. Estás a seguir o processo?

É para isso que cá estou. Para a ouvir.

Pois será. E essa foi uma terceira fase, aquela em que a Dra me ouviu. Eram 50 minutos avassaladores na quantidade de pormenores que sabia irrelevantes mas que, precisava eu, não seriam irrelevantes para si. Entretanto, com o hábito, talvez das férias, deixei mesmo de ter o que quer que fosse para lhe dizer, Dra Sininho. Será que foi o seu papel que mudou? Por ter a certeza que lá está, independentemente do conteúdo? Toda a exposição servirá para isso?

Talvez.

Poderá ser mais afirmativa agora, julgo, e dar-me a sua opinião. Tem sido longo este processo. Sabe que a quantidade de opiniões vai aumentando ao longo das sessões? E vão diminuindo os hum hums. Será este um pormenor interessante? A Dra. também terá aprendido esse equilíbrio, sobre a quantidade de hum hums e de opiniões que poderia aplicar em cada caso. Será que…Dra Sininho, também já sonhou com Peter Pans?

Claro. Os processos são os mesmos. E talvez haja uma outra fase. Em que a exposição adquire outra função.

Interessante, dizia isso no início desta conversa. Quando tentava entender o que significaria o meu silêncio. Que função, Dra. Sininho?

Não seja ansiosa. Descobrirá. Eu sou uma fada, e estou habituada a esperar, porque o meu maior sonho é vir a ter o tamanho dos humanos para poder abraçar o Peter Pan. E isso vai acontecer-me. E isso vai acontecer-lhe.




sexta-feira, 31 de julho de 2009

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Cathy (clique aqui)

Há cinema nas conchas hoje.

Hoje não posso. E nunca nos encontraríamos. Não te conheço.

E sabes, o cinema nas conchas é maravilhoso, porque estamos no meio das árvores, e está um ligeiro fresco à noite.

Tens um sítio fixo para escrever? Qual é o teu perfil? Tens de acrescentar informação ao teu perfil.

Sentes-te parte de algo maior. E há o barulho das rãs juntamente com o barulho do ecrã gigante. Impressionou-me o silêncio das pessoas. Andaremos todos desejosos de silêncio? Deve ser a minha vontade que o sentimento seja geral. É geral?

Andamos todos cansados, sim. É o fim do ano lectivo.

Gostava de conhecer o Rodrigo Leão.

Tens sabido do João? Porque choras?

Choro sempre a ouvir esta música. É tensa mas calma, entendes? Ando comovida com tudo, o que queres. Comovo-me a olhar para a planta, e a contar os fios dos nervos e a ver forma que assumiu para ir de encontro à luz. Comigo a gostar do filho do João. Com os jaquinzinhos que estavam tão bons. Com o teu cabelo despenteado.

Eu não tenho o cabelo despenteado. Que idade tens?

Tinhas sim, o cabelo despenteado. Sou uma criança, não podia pôr isso no perfil. Será possível chorar de ternura? Sabes que associo sempre a palavra cordeiro à palavra ternura? Será pela semelhança fonética, ou pelo significado que atribuo ao bicho?

Não há nada que se coma em tua casa? Estou cheio de fome. Por falar em bichos.

Tudo continua, tudo continua sempre. A tua fome, as árvores, os sons, o sono. Apesar de tudo mudar, inclusivamente eu, que já aprendi a gostar de uma certa oscilação. Agora que penso, será o facto de se manterem que me faz achá-los fantásticos? À tua fome, às árvores, aos sons, ao sono. Como se me protegessem. Acharei belo o que é perene? Comover-me-ei com o transitório por contraposição ao que é eterno? Será natural esta minha alienação, esta minha estranheza? Já não sei qual dos estímulos me provocou esta reacção, a minha amígdala resolveu disparar e eu nem sei porquê. Talvez o teu amor, ou a música do Rodrigo Leão, ou a minha fome, ou o meu cordeiro, que por sinal está óptimo, come-o. Ando a falar bastante em comida nos meus textos, notaste? Tens este efeito em mim, fazes-me disparar a amígdala de cada vez que te vejo, como se fossem todos os estímulos de toda a minha vida em conjunto a saírem num jacto. Bem sei que sou melodramática, mas ando a precisar de um certo romantismo. São muitos anos a andar para a frente, a andar para a frente. Foi tanto tempo que me apaixonei pela minha planta, e pela tua fome, e pela minha árvore, e pelo meu sono. Como uma tensão tão grande que se acumula e sai para todos os lados, basta tocar-me ao de leve, ou sentir-me de manhã quando acordo. Penso e sinto as várias partes do corpo, e o lençol a passar-me pela pele pela pele. Apesar de tudo mudar, tudo mudar sempre. Apesar da angústia. É um conforto a minha pele no lençol.

sábado, 11 de julho de 2009

Associação livre

Bom dia Dra.

Bom dia Rosa. Conte-me, trouxe-me o trabalho de casa?

Trouxe sim.

Então diga-me. Nome.

Eva.

Onde vive.

Na Austrália.

Porquê na Austrália?

Porque imagino os cangurus.

Quais são as cores predominantes?

Verde e cor de laranja. A rapariga é ruiva.

Imagem.

Um cavalo a andar muito depressa.

Hum hum. Pensou muito, ou essa imagem veio-lhe espontaneamente?

Pensei bastante. Mas foi espontânea. Essa ideia de que a verdade é mais imediata é antiga, Dra. Complicado será aceder ao primitivo e exprimi-lo nesta nossa lógica. Não sei como hei-de dizer-lhe.

Já experimentou fazê-lo directamente?

Que quer dizer “directamente”? A partir do momento em que o exprimo deixará de ser directo. Queria que sentisse sem ter de lhe dizer. Sempre pensei que era óbvia, Dra. Gabava-me da minha transparência. Entretanto disse-me que eu era incompreensível. E compreender a minha própria incompreensão foi terrível. Tu devias ser ruiva, era o que me dizia. Nasceste para ser ruiva. Morena nunca irás ser compreendida. E bem sabe que todos temos este sonho que nos abarquem.

Porquê ruiva?

Talvez associe a cor ao fogo, e o fogo à luta. E a imagem do cavalo a correr bate certo, não? Estou pronta para uma sessão de psicanálise.Talvez seja má ideia, imagino a interpretação do cavalo a correr. Mas atenção Dra, apesar de tudo eu estava consciente. Não entendem eles que a angústia é natural, e que o facto de a afirmar me faz tranquilizar-me nela. E a luta pode ser alegre, imagina um fogo triste? A minha angústia é cor de fogo. E o cavalo do meu sonho é castanho, quase preto. Imagino que preto deva ser morte nos sonhos sonhados, afinal é uma sinestesia básica. Será esta uma angústia de morte?! Dra! Onde veio parar a associação livre! Devia chamar-se antes angústia de vida, mudava-lhe logo o significado e provavelmente deixaria de ser fonte de insónias. Mas descanse, porque a minha imagem tem verde, e cor de fogo, e ainda a Austrália, que não sei que cores terá, e cangurus. Sonhar com cangurus deve ser sinal de vitalidade, não? Sempre aos saltos…Vou terminar, Dra. Que isto da associação livre é muito cansativo, e estas cores todas confundem-me e eu hoje estou em modo controlador, preciso de alguma ordem. Pode terminar a dra? Custa-me tanta liberdade.

Daqui a duas semanas? Cá a espero, à mesma hora. Desta vez sem trabalhos de casa.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Este post não é sobre o Charlie Brown

O que estudas?

A histórias culturalmente disponíveis que as pessoas utilizam.

Que utilizam para quê?

Para dar passado e presente e futuro às suas vidas. Interessas-te realmente pelo que estudo?

Claro, caso contrário não perguntaria. Gosto tanto de ti. E diz-me, há muitas histórias?

Na base serão poucas. Mas claro, poderás inventar uma infinidade delas, se as combinares entre si. Porque gostas de mim?

Não sei. Gosto dessa tua forma de comeres os espinafres com queijo.

Não me digas que me babei a comer. Morro de medo que isso me aconteça.

Não. Julgo que é o prazer de estar que passa por ti. Estás aí.

Estou. Talvez por isso a Teresa goste tanto de me alimentar. Sabias que há pessoas que têm uma esquizofrenia numa língua e noutra não?

A sério?! Isso é tão giro.

Sabia que ias gostar. Achas que é porque os arquétipos culturais são diferentes? Utilizam outra forma de formatar o mundo?

Em que outro país gostarias de viver daqui a 10 anos?

Não sei…se fosse viver para o Japão ias visitar-me?

Claro. Nessa altura a distância impunha a necessidade de nos encontrarmos. Talvez fosse até uma forma de nos vermos mais. Come mais caril.

Não quero mais. É tão bom estar aqui contigo. Achas que lhes diga?

Para quê? E além disso é indiferente. Que saibam ou não.

Porque é tão bom? Tenho tantas saudades, agora que te ponho a falar comigo. Sabes que às vezes faço isto, só para me lembrar das saudades que tenho tuas. Prometo que me lembro de ti tantas vezes. Prometo até que falas comigo tantas vezes. E dizes disparates, e rimo-nos tanto os dois. Prometo que te dá saúde, porque não é possível que a quantidade de riso que te dou à personagem não te dê saúde. De vez em quando também falamos a sério, apesar de ser difícil. Ponho-te a falar comigo sobre arquétipos e assim, mas no fundo sabemos que nos estamos a rir e assim. Algumas pessoas, o João por exemplo, julgam tantas vezes que este meu ar interessado, peremptório, por vezes mesmo exaltado a falar de arquétipos e assim, que sou eu a pensar que eles existem mesmo, e põem-se a contrapor com outras palavras. Que não, que isto dos arquétipos não é nada como pensamos. E que angustiados que somos, caso contrário utilizaríamos outras palavras para estes estados, e falaríamos antes de outros assuntos, chatos dos psis. Não entendem eles que mesmo quando nós discutimos, quando discutimos assim alto os dois, que tu a discutir elevas um pouco a voz. Sabias? Porque também te ris alto, tinha de te dar coerência. Vês logo como é alguém pela forma como se ri, ou como não se ri. Não entendem eles que quando discutimos há um riso profundo que nos protege.

domingo, 21 de junho de 2009

Não és tu, pois não Charlie?

Por que me hablas?

No sé.

Bueno. Y te quedarás en silencio?

No tengo nada para decirte. Pero supe que te quería hablar. Me entiendes si te hablar en portugués?

No te entiendo de todo. En cualquier lengua.

Bom, assim posso escolher a que me apetecer. Aquela em que me exprima melhor. Espera um segundo, tocaram-me à porta. Deixa-me só ver quem é.



Publicidad. El ordenador se queda loco com mis cambios de personages. Ya no sabe lo que corrigir.

Ah claro.

Soou-me a crítica a tua confirmação. Achas que há quem seja realmente só um?

Julgo que não. Mas talvez haja quem se sinta um mais facilmente. E não estarás a projectar a auto-crítica?

De que dependerá essa facilidade?

Talvez o facto das várias personagens serem condescendentes umas com as outras. Ou darem-se tão bem que podem falar e gritar todas ao mesmo tempo sem que ninguém se zangue. Ou uma delas dominar sem que dês conta, e fica o assunto resolvido.

E as outras não aumentam de tamanho ao longo do tempo se forem estranguladas? Imagino-as a ficarem gordas de raiva por não as deixares existir.

É um risco, sim. Vês, essa é outra a falar. Não notas pelo tom?

É verdade. Foi repentino, mas talvez porque comecei a falar contigo, e não com o meu interlocutor anterior. Não será bem outra, apenas uma conjugação diferente. Charlie, se não somos um, o que muda? Apenas um deles?

Talvez. Mas bem sabes como a parte afecta o todo. Dizem eles que essa mudança será de segunda ordem. Muda-te a existência.

Não devia ser de primeira, dada a sua importância? Desculpa. Não queria de todo vir parar a este tema, mas poderia nunca mais ter tempo para ele. De vez em quando começo a ficar assim, com as mãos suadas, à espera que me venham os temas e as palavras certas para me sentir. À espera. À espera. E nada. Devia aprender mais línguas, talvez conseguisse sentir-me em russo, ou em japonês. Quem sou eu, hoje? кто я сегодня? Сегодня я русский. Eu hoje sou russa. Perdão pela minha loucura, sabes como é. Isto de haver traduções online é uma tentação. Estou sempre a ver se me traduzem. Será que a minha loucura é trans-cultural, Charlie? Esta coisa de tudo ser histórica e culturalmente situado amarfanha-me. Preciso de algumas generalidades.

Esses tradutores não são bons. Olha para essa construção…esperemos que não haja russos por aqui, e com a quantidade de gente que te anda a visitar terás de rezar para tal não acontecer. Temos de desconstruir-te, bichinha! Ver em que língua funcionam os vários órgãos, e como chegaram a essas construções frásicas. Analisar esse baço, histórica e culturalmente situado. E esse estômago, e essa garganta, que parece que anda ressentida por falares tão pouco. Já sabes que a tua garganta é exigente. E lobinho…

Tu nunca me chamas lobinho.



Quem está aí? Não és tu, pois não Charlie?

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Esperas por mim, Charlie Brown?

Então? Aparece, já estou cansada.

Procura bem!

Estou de férias, não é justo fazeres-me andar assim neste desvario.

Procura bem!

Não quero procurar. Estou cansada de tantas perguntas. Será possível viver um pouco sem perguntas? Porque acharíamos tão divertido, ainda tão pequenos, brincar a fugir uns dos outros? Quais são os insectos que mais se aproximam dos homens? Porque é que os castores constroem barragens? Há mamíferos sem pêlos? Porque é que os cangurus têm uma bolsa? Porque fica tão feliz um bebé a encontrar os olhos escondidos por trás das mãos, vezes e vezes e vezes sem conta? A que velocidade crescem os cabelos? Porque não podemos respirar debaixo de água? Que quantidade de sangue temos no corpo? O que é uma nódoa negra? As borboletas diurnas fazem casulo? A que se assemelha uma enguia jovem? Os peixes voadores voam mesmo? Como é que os pirilampos se iluminam? Porque trememos quando temos frio? Porque não podemos ter varicela mais do que uma vez? Por que razão coramos? Porque é necessário sentir a dor?

Ela protege-te de coisas ainda mais terríveis. Por exemplo, se tens alguma coisa num ouvido, as células nervosas enviam uma mensagem de dor ao cérebro e este fica a saber que se passa algo de estranho e decide o que deve fazer.

Quem és tu?

Sou o Charlie Brown. Não te lembras de mim? Tinhas seis anos quando nos conhecemos.

Porquê tantos porquês, Charlie Brown? Que te deu para fazeres um livro com respostas sobre todas as espécies animais, do caracol ao homem? Vamos parar, Charlie. Nos próximos tempos vamos inverter a lógica de encontro entre as perguntas e as respostas. Um aranhiço é um animal aparentado com as aranhas mas que não tece teias. Esta resposta andava escondida, pobre, desencontrada da sua pergunta. O que é um aranhiço? Viste, Charlie Brown? A resposta encontrou a sua pergunta! Também isto é circular, não são só os comportamentos das pessoas. Estou cansada da circularidade, Brown Charlie, precisamos de nos iludir com finais e recomeços. Na verdade não fazes todas as perguntas, só as que fazem sentido, e isto é um ciclo sem fim, e eu ando demasiado cansada. Entenderás? Preciso de fins, para haver uma certa coerência com o tempo. Se me ponho a pensar que o futuro influencia tanto o passado quanto o contrário…Charlie!

Diz minha querida.

Pareceu-me que estavas distraído. Charlie, as minhas células nervosas…andam a enviar sms ao meu cérebro a dizer que se passa algo. E o meu cérebro decidiu. Não procurar. Vou de férias, pelo menos uns dias. Esperas por mim, Charlie Brown?

quinta-feira, 28 de maio de 2009

O teu pé esquerdo

Estou aqui! Não me vês?!

De que cor é o teu cabelo?

Castanho. Não me vês?! Aqui! Estou a acenar! Tenho a certeza que és tu, do outro lado da alameda.

E os teus olhos, de que cor são?

Castanhos. Não me vês?! João! Como é possível?!

E o nariz, como é o teu nariz?

Não sei definir narizes, Ana, muito menos o meu. Vou levantar agora o meu pé esquerdo. Viste? Caramba Raul, sou eu!

Não vejo. Podes ser mais explícita na tua identificação? Já pensaste que todos estes problemas podem ser fruto disso? Como podes esperar que saiba quem és?

Mas…mas nós combinámos, António. Combinámos que quando nos encontrássemos saberíamos. Desconfio agora que não sejas tu, não é possível afirmares algo com tanta veemência, e de repente mudares de ideias quanto ao meu reconhecimento. Se há coisa que parece ser importante é a confiança do reconhecimento.

Bom Maria, passou-se tempo, e eu li entretanto tantos livros. Foram muitas personagens, e de todas fui pondo um bocadinho em ti. E depois, o conjunto dos sítios não deu a alameda da universidade, foi no jardim do príncipe real que te construí em mim.

A alameda tem relva. Compreende, nem tudo poderá corresponder à história. Há que ser flexível. E sou eu, querido. Não poderia ser outra pessoa a levantar assim o pé esquerdo, e a gritar João! com esta transparência na voz. E a sair do autocarro num repente apenas porque te vi. Como podes duvidar? Tu, que sempre me disseste que esta impulsividade era tão característica. Mas está este trânsito descomunal, que me impõe esta dificuldade e não me deixa ver-te ao perto. Parece que esta também constitui uma das grandes formas narrativas, uma perturbação repentina, a personagem lutadora que vai ultrapassando os vários obstáculos, até que tudo acaba em bem. Na verdade a estrutura dos filmes anda a mudar. Como não havia a nossa de mudar também, mais cedo ou mais tarde?

Bem sabes que demorará. É um processo, meu bem. Não mudamos de filme de um momento para o outro. Ou quem sabe de um momento para o outro, mas depois de vários bocadinhos de nós terem começado a gritar do outro lado da alameda. Coitados dos nossos bocadinhos, roucos que eles estão, e eu aqui a escrever a tese e a mandá-los calar, porque só consigo trabalhar em silêncio. Talvez por isso ande a sentir-me tão culpada. Vão-me dizendo subliminarmente que sentem a minha falta ali no sofá, e que a sra. dos tempos livres passa mais tempo com eles do que eu. Qualquer dia jantam lá, dizem-me. Estão tão crescidos, Maria, havias de vê-los, são umas crianças adultas. É um paradoxo isto de só se ouvir as crianças quando elas já são adultas. A história é outra, e no entanto terá de ser a mesma. És tu pois, do outro lado da alameda. A mesma. Minha menina. Desculpa. A história da alameda. É que as árvores do jardim do príncipe real. Menina. O teu pé esquerdo. Menina minha. As árvores do príncipe. Desculpa. O jardim das árvores do outro lado do real. Quase não me deixaram ver o teu pé esquerdo a levantar-se.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Os olhos da Rosa

Bom dia Dra.

Bom dia Rosa. Sente-se. Que se passa? Pareceu-me que tudo andava tranquilo.

E anda. Mas ontem quando acordei, achei que estava a ver mal. Fomos então ao oftalmologista.

Fomos? A quem se refere? E o que lhe aconteceu?

Fui com a Rosa. Porque foi ela que me deu a indicação de que algo não estaria bem.

A Rosa?

Disse-me ela, assim que acordei, que algo de estranho se passava. Que não era eu. Comecei por dizer-lhe que seria talvez por ser cedo, e não é meu costume fazer-me ver com o sol em determinada posição. Sabe como o contexto influencia, ainda mais a posição do sol. Mas ela disse-me que não, porque até a cor dos meus olhos tinha mudado.

O que se passou na noite anterior? A Rosa sentiu algo de diferente?

Ela sentiu. Mas não conseguia nomear, além da diferença nos meus olhos. Implorou-me para que voltasse, que me deixaria ser o que eu quisesse, que nunca mais me faria uma fita. Chorava como uma criança. Que não conseguiria olhar para mim com outros olhos.

Quais?

Os meus. E os dela, bem sabe que depende dos quatro. E, na verdade, enquanto a Rosa me falava dos olhos, senti-me absolutamente triste, embora tranquila. Ela não notava, mas começou a ficar com uma cor de pele esquisita, e a cabeça dela aumentou. Ficou parecida com um feto com seis meses de gestação.

O que lhe disse?

Acalmei-a, claro. Que não mudaria nunca. Mas enganei-a, Dra. Não podemos mudar de olhos e dizermo-nos os mesmos. E também não lhe falei da cabeça a aumentar, e da sua meninice que brotava, com todas aquelas lágrimas grossas, ainda que tudo isso me enchesse de ternura. Até porque, pensei, seria a nova cor dos meus olhos a responsável, e não seria justo inquietá-la por algo sobre o qual não teria qualquer poder. Já bastava a minha mudança. Corri para o espelho, e ela sempre comigo, e os nossos quatro olhos fitavam-nos do lado de lá, o que no conjunto dá oito olhos, todos a olharem uns para os outros. Era demasiada gente a dar a sua opinião sobre uma coisa que, algo me dizia naquele momento, seria simples, pequeno, apaixonadamente reduzido, apesar de todo aquele estardalhaço. A Rosa pôs-se então aos gritos, esses já de mulher e na fase de raiva, que julgo que é a seguinte. Que não era possível, como podia enganá-la assim, e ter-lhe escondido uma coisa destas. Haveria pior traição? E eu dizia as balelas de sempre. Que não, que os outros olhos sempre tinham sido dela, inteiramente dela. Olhei-a então, a agarrá-la com os novos olhos, como quando apertamos algo com força na esperança de que não se evapore.

E ela?

Ela disse-me, através dos oito olhos que nos viam, que lhe desse uns minutos, para se despedir. E se a seguir ia com ela ao oftalmologista. Parecia-lhe andar a ver mal.

sábado, 9 de maio de 2009

Há aqui rãs (clique aqui)

Porque achas que a descrição tranquiliza?

Não sei. Talvez por associares directamente uma realidade a um texto. Por achares que compreendes, ou mesmo que sabes.

Estou tão cansada hoje, que preciso de descrições. Que inveja tenho daquele bebé. É tudo ainda para ser, e não falo apenas na possibilidade de ser futebolista, ou gestor, ou bailarino, ou cantor, ou. Falo de ser. Descrevo-te como que para tentar que existas além da minha forma de te descrever, não dando conta que mesmo a descrição é um engano. És mais do que a forma que te dou, amor. E gosto tanto de ti. Nunca poderei ver-te, ainda que na minha ingenuidade tentasse fazer um retrato factual. Agora que penso em ti, não me lembro se tens bigode. Tens bigode?

Estou aqui ao teu lado, passarinho. Que te aconteceu com a memória?

Sabes que tenho má memória visual…que confusão me faz não saber se tens bigode. Ouves as rãs? Voltaram. Com os grilos. Porque será que este ano as rãs se sobrepõem aos grilos? Nada à volta mudou, os sons são os mesmos. Perco-me pensando no que sou, e se os grilos serão os mesmos e apenas eu terei mudado. Quem sou eu nesta nova forma? Quero tanto que me digas, e no entanto peço-te silêncio. Poderás dizer-me quem sou em silêncio?

Sabes que isso será impossível, conhecemo-nos um ao outro nas formas que assumimos. Continuas a andar com o papel do bolo. Só não sei o que te deu para comeres esse queijo com papel de propósito. Que comportamentos estranhos tens.

Queria sentir-me…e cala-te, amor, porque me apagas com as tuas palavras. Porque não me dás o teu silêncio? Mas aquele silêncio presente, como quando te concentras a ouvir os grilos.

Entende, passarinho. Gosto de ti e por isso te aconselho. Tira-te quando vais para a rua, como tiras os sapatos quando entras em casa. E se não o fazes devias fazer. Cada coisa no seu lugar, passarinhos para um lado e humanos para o outro. Imagina-te, com as penas todas sujas de palavras. E o humano cheio desse passarinho, que poderão pensar? Até a frase é esquisita, quanto mais a realidade que representa.

Ouve as rãs que te dou. Vou-te dando os vários animais, na esperança que me entendas. Arranjei esta bem alto, só para ti. Não andarás um pouco surdo? Compreendes agora porque se sobreporão elas este ano, esta rã fala altíssimo. Mas não a tomes como realidade, é um efeito de som. Na verdade, um duplo engano, nem de uma reprodução se trata. Não fiques triste, meu bicho. Porque eu te prometo, do fundo do coração que te prometo. Apesar de ser um efeito, esta rã existe mesmo.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

E só estou triste hoje porque eu estou cansada

JL - O adulto é sempre solitário?

CL - O adulto é triste e solitário.

JL - E a criança?

CL - A criança…tem a fantasia, solta.

JL - A partir de que momento, de acordo com a escritora, o ser humano vai-se transformando em triste e solitário?

CL - Isso é segredo. Desculpe, eu não vou responder. A qualquer momento da vida, basta um…um choque um pouco inesperado, e isso acontece. Mas eu não sou solitária não, tenho muitos amigos. E só estou triste hoje porque eu estou cansada. De um modo geral eu sou alegre.

Clarice Lispector, em entrevista ao jornalista Júlio Lerner

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Antárctida

Meu querido. Escrevo-te esta carta, para ver se me percebo. E para que valides o que escrevo, que também sou eu. Queria contar-te o que ando a fazer, de algum modo ando a precisar de simplesmente descrever o meu dia, e de partilhar a árvore aqui mesmo junto à janela, e o parque, e o autocarro a passar cheio de gente. Adoro ver as pessoas no autocarro, é uma beleza de gente. Falaram-me entretanto da eco para desmarcar. Porque não será possível algo simples, como o autocarro que passa? E da Dinamarca, nada, nem um sinal. Esteve sol hoje, vesti algo mais fresco. Mas sabes que às vezes tanta leveza perturba-me, esta leveza do sol a brilhar dispersa-me. O frio concentrava-me, ficava aqui feita bloco de gelo, o que às vezes era um perigo, porque assim que surgia o sol eu explodia, ainda que apenas já de noite. Juntei “apenas” e “já”, mas não me soou bem. Que achas?

Continua.

Bom. Apenas já de noite. Esse vulcanismo tão característico trouxe-nos dissabores, mas que hei-de fazer? Experimentei fazer como nos géisers, deixar-me sair assim aos poucos, mas sentia que não era eu em altura nenhuma, entendes? Seria uma coisa chocha, de vez em quando saía um rim, depois um fígado, e sabes que isolados não têm graça nenhuma, e sobretudo deixam de fazer sentido, o sentido está na relação. Não dizes que a união faz a força? Aí está outro significado para a mesma ordem de palavras. São fantásticos aqueles dias em que está frio e sol ao mesmo tempo, de uma inteireza avassaladora. Isto já vai além da descrição a que me propus.

Continua.

De uma inteireza avassaladora. Passei então ali pela lavandaria para pôr o tapete a lavar, e telefonei para a contabilidade para saber dos recibos. Fui depois ver um filme muito curioso, havias de gostar. Um conjunto de personagens que se encontrava na Antárctida, encontraram-se ali no fim do mundo porque acharam que o meio estava vazio. Terminava um deles dizendo que o mundo tinha consciência de si através do nosso reflexo. Achei uma boa imagem e resolvi partilhá-la contigo. Falei-te. Tu nem notavas, mas eu tentava desbobinar a minha vida em cinco minutos, julgo que para mantermos uma qualquer ligação, mesmo contigo que nem sei quem és. Mas ia jurar que andas escondido por aí. Não andaremos todos? E a seguir terminava com uma frase sobre nós, talvez no futuro. O que achas?

Sê mais sucinta. E experimenta virar-te um pouco mais de lado para a câmara. Quando chegares a meio viras-te de frente, para que te vejam bem. Misturas assim o mistério com a transparência. Pode ser? Podes recomeçar.

Meu querido. Escrevo-te esta carta, nem sei bem porquê, nem para quê. Apenas porque tenho de ser por algum lado. Contigo. Talvez na Antárctida.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A verdade do fumo

Olá.

Bom dia.

Desculpe, é que estava a olhá-lo, e a constatar que estava no meu sonho de 6ª feira passada.

Como?

O que lhe digo. Tenho fraca memória visual, mas quando reencontro alguém, sei-o. Eu estava a fumar um cigarro e estava comigo, também a fumar.

A menina não fuma.

O senhor não sabe nada sobre mim. Não fumo, mas fumava no meu sonho.

Nunca poderia estar no seu sonho, nunca nos vimos.

Lamento desiludi-lo, mas estava. Aceite. Pode aceitar? O verdadeiro amor está na aceitação. Quando aceitamos que não poderemos compreender tudo. Não pode controlar o meu sonho. O meu sonho é meu.

Não tenho amor por si, não a conheço.

No meu sonho tinha. E nunca sentiu amor por desconhecidos? Às vezes estou nesse estado. Queria agarrá-lo.

A mim?!

Não, ao estado. Já não me agarro a pessoas, mas ainda me tento agarrar a estados. Até constatar que são como as pessoas. Fogem-me. Apesar de eu ter desenvolvido esta minha capacidade de entender o que certos gestos, juntamente com certas palavras e certos silêncios, poderão querer dizer. Por exemplo, esse seu jeito com a mão. E esse olhar desviado quando lhe falo em agarrá-lo. Tinha colocado aqui mais uma ou outra descrição sobre si, mas senti, ou pensei, o leitor sabe que por vezes se confundem, que aumentar o pormenor retira a verdade à ideia. Mas não o quero maçar com as verdades, sei que elas podem ser muito maçadoras. Andam às voltas a maçar, a maçar, podes-me trazer um copo de água, gostas desta roupa nova que trago hoje, e depois uma birra, um pequeno drama, só para nós sabermos que existem. Voltando aos estados. Partilhava noutro dia consigo, chamavas-te Rafa no meu sonho, calculo que de Rafael, partilhava consigo a alegria pela beleza do que nos foge. Saiu-me assim, compreenderás? É o mais perto da verdade que me vem à cabeça. Já quis compreender a beleza, mas assim que tento agarrá-la deixa de existir. Aqui um equilíbrio…porque foi a compreensão que me permitiu apreciar a beleza, inclusivamente a de não compreender.

A menina é louca.

Estava louca por ti no sonho, Rafa. Estávamos os dois loucos a partilhar a beleza da vida. Era tão bom, sentíamos os dois a leveza da transitoriedade. Chorávamos, Rafa, tal era a felicidade de sentir que sentias que eu sentia a mesma coisa. O que se pode pedir mais da vida? Éramos transparentes, creio. Não, invisíveis. Ninguém nos via no jardim, só se via o fumo dos cigarros. A Sra. Miralina comentou até comigo que foi notícia o facto de se ver fumo de tabaco sem corpos que o causassem, e bem sabes que as pessoas procuram as causas para as coisas, ainda mais quando metem fogos e fumos e assim. Mal sabiam eles que tudo isso fazia parte do meu sonho. Dei então corpos ao fumo, também eu caí no erro das outras personagens, e quis compreender. E nesse instante, nesse preciso instante, deixei de te amar, e tu a mim.

domingo, 5 de abril de 2009

Traição

Estás aí?

Espera. Tive de te deixar por uns momentos.

Vem comigo ver “o som no cinema”. O que te fez ir-te embora assim, sem dizeres nada, ao fim de tanto tempo de união?

O que sentes quando estou?

Como se uma imagem me perseguisse. Sobrevoa-me. És quem me permite observar-me com tranquilidade na minha agitação.

De que tens medo? Se tiveres medo que eu desapareça deixas de me ver.

Da ilusão. Sabes que tudo isto é uma invenção. Estas várias formas que assumimos. A consciência da ilusão é aterradora. Por isso iludo-me pensando que não tenho consciência dela. Da ilusão.

Iludes-te conscientemente para enganar a consciência da ilusão? Que trapalhona és. E eu serei então mais uma invenção. Que nome tenho?

Não te dou nome, para que existas mantendo a tua essência.

Não será o contrário? Se me deres um nome passarei a existir, pelo menos na tua cabeça. Eu sou a…

Não! Não quero dar-te nome, não quero saber quem és. Assim existes de certeza, ainda que sem nome. Porque se não existisses eu não saberia que estou agora com o meu polegar na boca, e a constatar a forma do meu dedo. Desde pequena que gosto de fazer isto. Imagino o dedo, a partir do que sinto nos lábios. Também faço corações com a língua a bater nas gengivas. Depois ponho o joelho assim, e amo profundamente a marca que lá está, observando-a a mover-se enquanto mexo o joelho. E tu sempre a ver-me. És a única que sabe disto. Não tenho de te explicar porque acabei a fazer corações com a língua, até porque não há razões. Espero que nunca me traias.

Não é nas gengivas que fazes. É nos dentes.

Nos de baixo. Que me perdoe a minha querida amiga, mas não sei o nome. Ficaria aqui tão bem. Espera um pouco, vou procurar no Google. Incisivos centrais. Que fácil era.

Podes colocar-me a trair-te. Podes colocar-me a fazer o que quiseres. Improvisa.

Que dizes? Não te posso manipular. O processo é o contrário. És tu quem observa.

Observo mas não manipulo. E foste tu que me criaste. Enfim, não sei quem terá criado quem. Experimenta dar-me ordens. Mamã dá licença? Desculpem-me, também já fui criança e estas coisas vêm-me à cabeça. Quantos passos?

Dá então dois passos para a esquerda. Dois à formiga para a esquerda.

Já está.

Incrível. Vejo-te dois passos deslocada para a esquerda. Ainda que pequenos, mas visíveis.

Vês? Que te disse? Fazes o que quiseres comigo. Agora vejo-te de perfil.

Tu não tens lugar. És apenas uma presença.

“Presença” é palavra. Não me definas, já que não queres que me perca. Andaria aí a gritar que sou presença, que sou presença. Presente! Diria. Que diz esta? Alguém lhe perguntou alguma coisa? Diriam. Imaginas alguém a compreender isto? Se fosse a ti pensava um pouco antes de escrever. Minha pequenina. E não penses que estás a ficar doida, porque senão a doideira passa a existir também para os outros, o que será um problema, porque tu já estás habituada mas os outros não. Dirão que me inventaste, e que te inventaste, para dares coerência à história, e poderão até não andar longe da verdade, mas não tens de lhes contar os segredos todos. A do coração com a língua, por exemplo. Porque lhes contas?

Eles quem? Apenas tu sabes, juro-te! É segredo nosso. A não ser que tu me traias. E eu nunca te poria a trair-me.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Conselhos da Lagarta

“Ora, não vale a pena chorar assim!”, disse ela para consigo, com bastante severidade. “Vamos mas é calar-nos já!”. Ela, geralmente, dava muito bons conselhos a si própria (apesar de muito raramente os seguir) e às vezes auto-censurava-se com tanta dureza que lhe vinham as lágrimas aos olhos; e lembrou-se até daquela vez em que tentara puxar as orelhas a si própria por ter feito batota num jogo de críquete que ela estava a jogar sozinha contra ela própria, pois esta estranha criança gostava muito de fingir que era duas pessoas.

“Mas não vale a pena, agora, fingir que sou duas pessoas”, pensava a pobre Alice, “pois já pouco resta de mim que dê para fazer uma pessoa que se veja!”.

[…]

- Quem és tu? – disse a Lagarta.

Estas palavras não eram lá muito encorajadoras para começar uma conversa. Alice respondeu timidamente: - Eu…senhor, eu agora neste momento nem sei. Sei, pelo menos, o que eu era, quando me levantei esta manhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde essa altura.

- Que história é essa? – disse a Lagarta, com um ar severo – Explica-te bem!

- Eu não me posso explicar, senhor, porque eu não sou eu, percebe…- disse a Alice.

- Não percebo, não! – disse a Lagarta.

- Acho que não me sei explicar melhor – respondeu Alice, muito delicadamente – porque, para começar, nem eu mesma percebo; mudar tantas vezes de tamanho, num só dia, faz muita confusão.

- Isso é que não faz - disse a Lagarta.

- Bem, talvez o senhor ainda não tenha sentido isso – disse a Alice – mas quando tiver de se transformar em Crisálida, sabe, isso há-de acontecer-lhe um dia, e depois disso em borboleta, penso que vai achar isso tudo um pouco estranho, não vai?

- Não vou achar mesmo nada estranho – respondeu a Lagarta.

- Bem, talvez o senhor sinta de uma maneira diferente – disse Alice - ; tudo o que sei é que, se fosse eu, achava isso muito estranho.

- Se fosse eu…! – exclamou a Lagarta, com um ar de desprezo. – Mas quem és tu?

[…]

- Então tu achas que estás mudada, não é?

- Acho que sim – disse Alice -, não consigo lembrar-me das coisas como dantes e não consigo ter o mesmo tamanho durante mais de dez minutos!

- De que espécie de coisas é que não te lembras? – perguntou a Lagarta

- Bem…eu tentei recitar a história da abelhinha, mas saiu-me tudo muito diferente! – respondeu Alice, com uma voz muito triste
[…]
- …eu gostava de ficar um bocadinho maior, se o senhor não se importar – respondeu a Alice - , oito centímetros é uma altura tão desagradável de se ter!

- É uma altura mesmo muito boa! – disse a Lagarta, zangada, endireitando-se toda enquanto falava (ela tinha exactamente oito centímetros de altura).

- Mas eu não estou habituada! – defendeu-se a pobre Alice, lastimando-se. E pensou: “Era bom que estas criaturas não se ofendessem com tanta facilidade!”

- Hás-de habituar-te com o tempo – disse a Lagarta; pôs o cachimbo na boca e começou a fumar outra vez. […] Um dos lados é que te há-de fazer crescer e o outro é que te há-de fazer minguar.

“Um dos lados de quê? O outro lado de quê?”, pensou Alice.


Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

segunda-feira, 23 de março de 2009

Para todo o sempre

Diz-me. Por favor diz-me que era mentira, quando com a tua voz clara, colocada, projectada, me disseste que nos iríamos encontrar sempre. Para todo o sempre.

Era mentira, meu amor. Apesar de nos irmos encontrar sempre.

Diz-me que era mentira quando me disseste que os meus pés eram os mais bonitos do mundo.

Era mentira. Apesar dos teus pés serem de facto tão bonitos.

Diz-me, por favor diz-me, que era mentira quando me chamaste. E que é mentira quando me chamas. Que tudo isso que dizes no meio do silêncio é uma distorção dos meios de comunicação utilizados. E que no fundo não queres dizer nada. Que nenhuma das palavras que de vez em quando te passam pela cabeça tem qualquer ligação comigo.

Era mentira. Penso em ti tantas vezes sem nunca pensar em ti.

Diz-me que é mentira este sofá. E a televisão, e o puff, e o cortinado novo. E as árvores, e o metro, e um pouco mais longe aquele edifício, o que ganhou um prémio, e um pouco mais longe a tua casa onde já não vives. Diz-me. Que os meus olhos e os meus ouvidos e a minha boca são teoria com que vejo o mundo. Que a matéria não existe, diz-me. Diz-me que morreste. Diz-me que ainda que os meus olhos te vejam não existes, que nunca exististe. Diz-me que estou tremendamente enganada, que toda a minha vida foi um engano. Mas di-lo com carinho. Diz que a culpa foi das circunstâncias e não minha. Diz-me que apesar de ter escolhido tudo mal não escolhi mal porque não tinha outra escolha. Diz-me que apenas o meu riso é verdadeiro, diz. Que o meu riso existe realmente, essencialmente, não há nada a fazer, porque fica preso noutras memórias para todo o sempre, mesmo quando as memórias morrem. Diz-me que a memória não existe, é coisa inventada por nós para existirmos. Quais hipocampos e adenosinas. Diz-me assim. Mas sempre com os teus braços abertos e compreensivos, como quem compreende não só com a cabeça mas também com os olhos e os ouvidos e a boca, e ainda a pele. Diz-me que é verdade que o meu sol voltou. E que é verdade aquele instante em que julgo entrar em comunhão com deus, mesmo sendo agnóstica. E que é verdade aquela imagem de que o mundo começou sem tempo, e que nós o inventámos, ao passado e ao futuro, como connosco. Se não houvesse passado e futuro tudo estava certo, e eu não precisava de te pedir nada, nem de esclarecer nada, nem de fazer a minha árvore genealógica, nem o meu genograma, nem o meu genodrama. Não existiria nada para comparar, nem nada a transformar. Eu ficaria sem trabalho de vez, não haveria tempo para transformações. Não querido, não haveria tempo é uma expressão literal, não é uma forma de falar da pressa das pessoas. Seria isso que querias dizer com o cantinho que nos arranjaste? Um cantinho sem tempo. Diz-me que é verdade. Que tudo isto é mentira. Que nenhum de nós existiu, e que apenas porque não existes e eu não existo e ele não existe e nós não existimos e eles não existem, me podes, ou me pode, é melhor começar a tratar-te na terceira pessoa, sempre mantemos a distância, dizer que sim, que é mentira.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Excepções

Minha querida, que leve estás. Pareces um balão a flutuar. É como te sentes?

Humm, não será bem isso…Apenas esta sensação…

E não será de assinalar, de marcar, de dar um nome a essa sensação? Para que possas recordá-la quando te pedirem as excepções aos momentos de angústia. Que te aconteceu? Onde foste? Com quem estavas?

Vim agora do cinema. Fui sozinha, João. Uma outra via, uma outra possibilidade. Uma história diferente, e parece que de alguma forma condizente com as novas experiências, e isso fará toda a diferença para uma verdadeira melhoria. Bem sabes como lutava contra aquela vida limpa e climatizada. A Joana disse-me no outro dia que eu estava com bom aspecto.

Parece-me bom, embora não entenda completamente o que dizes.

Falávamos da resiliência, e do que isso significaria. No congresso bem nos disseram que ela só existe para quem a examina. Não será assim com todos os conceitos? Um prazer estar no cinema sozinha, e poder chorar à vontade sem que olhasses para mim sem olhar, e pensasses sobre mim sem pensar, e partilhasses comigo sem partilhar. Falavam de vidas limpas e climatizadas, também. E vim a pensar pelo caminho se a outra via não será também ela uma história.

A outra via é contra a história pré-estabelecida.

Pois será. Mas pergunto-me se a história contra a história não será também ela pré-estabelecida. Entendes? A excepção também é necessária, quase exigida. Para que te possas sentir tão abençoado por te ter calhado essa. Para que possas pensar que estás a atingir a tua tão almejada estabilidade, João. A minha turbulência justifica-te. Não me fales de altos e baixos, nem de intranquilidades, nem de intensidades, nem de todas as palavras que tanto gostas de aplicar nos mais variados contextos. Já te disse que ninguém quer saber das tuas justificações, nem do que fazes ou não fazes com a tua vida. Não é sobre ti que pensam quando pensam em ti. Quando pensam nesta tua vida, com os teus filhos, e a tua mulher, e a tua casa, e o supermercado, e o condomínio, Rosa, como poderás ser a administradora do teu condomínio? E o pingo doce, e o dinheiro, como gastarei tanto dinheiro sem notar, e os esgotos, e a factura da zon, e a internet que não funciona, desliga o fio do computador, depois da tomada, e volta a ligar pela ordem inversa, liga e desliga e liga e desliga, sempre com esta ordem. Não quero acreditar que a minha luta esteja pré-estabelecida, porque deixará de ser a minha luta, e continuará a ser de uma qualquer super e hiper e megaestrutura. As prateleiras estão arrumadas de forma a retirares o amaciador a seguir ao shampô, e é verdade, que liso que o cabelo fica. Tudo está arrumado, rigorosamente arrumado, até quem sabe religiosamente arrumado. Menos o meu carro.

domingo, 1 de março de 2009

Concentra-te

Dizem que os gatos não gostam que os olhem nos olhos.

Não é o meu caso. Vês como te olho fixamente? E como depois fecho os olhos, enternecida com o teu olhar protector?

Minha gatinha…

Porque gostaremos de olhar nos olhos dos outros? E porque tanto vasculhas nesses papéis velhos? Vês este rato? Brinca.

É o mesmo rato de sempre. Como não te cansas?

Mas brinca com atenção. Sabes que isso se nota. Não te lembras de pedires que te olhassem a saltar da piscina? É a mesma coisa. Sabias quando olhavam verdadeiramente. Quem te ensinou a saltar? Que pernas esticadas pões. E como te disponibilizas para o salto. A atenção. É a intensidade que te permite tanta atenção. Foca-te…volta a focar-te como antes, tenho saudades…

Ainda não. Ando a aprender a resistir à frustração, e a recaída faz parte do processo. Focar-me no objectivo sem que dependa dele. Dizem que os momentos de verdadeiro prazer exigem que a atenção depositada esteja num nível adequado às oportunidades existentes. Terei de aprender a reconhecê-las. Às oportunidades. Não me peças saltos tão rápidos.

Vem brincar…o que fazes que é mais importante do que vir brincar?

Releio a minha correspondência. Sabes que de vez em quando tenho de o fazer, parece que me devolve. Já de pequena guardava rascunhos de tudo quanto enviava. Devia adivinhar-me 20 anos depois, nesta necessidade de me rever.

Anda brincar. Anda! O futuro presente está à tua frente. Não te ruborizes dessa maneira. O que dirás daqui a 20 anos? Estás a falar com um animal, e são duas da manhã! E sabes que tudo agora fica registado…o nome, o dia, a hora, o local, o número de visitas. Mesmo que decidas retirar as conversas de circulação, tudo isso fica guardado. Sempre me perguntei para onde iria toda a informação. Sou bicho, mas também faço perguntas. Quando te ponho a cabeça assim de lado, em forma de interrogação. É quando te pergunto porque não brincas. Uma informação que fica do outro lado, do outro lado do mundo. Ou será noutro mundo? Vês esta carta? Tinhas dez anos e escreviam-te que a vida era difícil. Como poderia ela parecer-te não ser, se tudo isso ficou escrito, inscrito em papel celular? E este número de telefone, ainda com sete algarismos. Porque guardas? Porque choras? Porque ris? Desculpa, dirás que a relação não é de causa efeito, mas mais uma vez te digo que sou bicho, compreende. Isso, ri-te. E chora. E ri-te, e chora, e ri-te e chora. Se aumentares a velocidade, as duas coisas começarão a acontecer ao mesmo tempo, e isso é maravilhoso. Vem brincar agora. Terminaram as perguntas. É uma ordem.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Quero

Desculpa.

Eu entendo. Mas não sei se seria uma boa altura. Para me mostrares o quanto estou por minha conta.

Não foi estratégico.

Lá fiquei eu a dizer adeus, a dizer adeus. Estou tão cansada, João. Fiz como combinámos. Vim escrever.

Parece-me sensato.

Mas gerir-me é assustador. E se descubro daquelas minhocas espongiformes?

Minhocas espongiformes não existem. É uma expressão tua.

Talvez resida aí o problema. Se encontro minhocas espongiformes, e larvas escopalinadas, e unicórnios com dois cornos.

Já sabes tudo. É só pores em prática. Deixa a bicharada sair. E essa pergunta não é verdadeira, não era o conteúdo da resposta que querias de mim.

O que queria eu realmente de ti?

Expor-te.

Para quê?

Para que te protegesse. Mas não é de todo o meu papel.

Qual é o teu papel então? Quem decide que papéis temos nas vidas dos outros? E nas nossas? Não é o papel dos terapeutas? A forma, João. Não é o papel dos terapeutas o de mudar a forma da relação? Não quero ler mais livros, não me proponhas livros que eu estou cansada de tanta informação. Não quero pensar se estou mais magra, ou mais gorda, ou antes igual, não quero que ninguém me diga que devo começar as frases na positiva, não quero explicações, não quero começar a andar sem saber que estão a olhar a ver se caio, não quero pensar que não posso ter quem me contenha se antes não me contiver, não quero sentir isto que às vezes me aparece na pele, e no fígado, e nos pés, e se vai espalhando pelo corpo todo, não quero ser sol, nem lua, nem coisa nenhuma, não quero decidir-me, não quero pensar se devo falar ou ficar calada, não quero repetir-me mas se não repetir nada não sou ninguém, não quero acreditar nas estrelas de cinema nem em estrelas de nenhuma espécie, não quero acreditar naquela figura que me apareceu à noite, que me ia estrangular ou abraçar, que sei eu sobre a intenção dos outros, não quero rótulos, não quero palavras, não quero prestar atenção aos sinais, não quero mudar nem permanecer a mesma, não quero porque não quero lutar mais. Para ser outra pessoa ou para ser quem sou. Quem sabe? E eu não quero saber.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Amor azul

Amor. Dei conta hoje que amanhã é 2ª feira, e que mais uma semana começará.

As semanas não começam, meu amor. Não existem princípios ou fins para as coisas. Tudo isso é uma ilusão.

E esquecemo-nos de comprar pão congelado para o pequeno almoço. Porque és tão inteligente? Não suporto tamanha inteligência. Com isso dos tempos e das ilusões. Poderás apenas averiguar quando é preciso comprar pão para os pequenos almoços da próxima semana?

Lembras-te, amor? Daquelas palavras que dissemos, ainda que encabuladamente, porque as circunstâncias não eram as ideais. Porque insisto em ver-te o que não és? Dizem que os neuróticos só se lembram dos momentos bons, isto quando estão longe. E os outros, dos momentos maus. Sempre prefiro os primeiros.

Estás muito pensativo hoje. E dramático. Que andaste a ler?

Em nome da terra. A Teresa disse-me para descansar a cabeça a ler algo não muito pesado, mas é claro que peguei no que me lembrava ter-me feito derramar lágrimas. Por acaso, agora que penso, não me terá feito propriamente chorar. É de um dramatismo seco, duro. Como esta cara que te ponho, vês? Julgo que não devo fugir. Apenas ter consciência das lágrimas. Que achas?

Acho que de vez em quando devemos mesmo fugir. Desaparecer. Esse canto ainda não está bem. Experimenta outra vez. Põe o pincel azul.

Amor. Pensei em ir para o teatro, para poder ser. Esta nossa vida não me permite. Ser. Como poderei pôr o verde, e o azul, e o amarelo, e as cores todas? Temos tantas cores, e tantas formas, e tanta gente para ser, que não cabem aqui. Não caberão em lado nenhum. Como eu hoje, não caibo em lado nenhum. Só neste cantinho aqui, onde me enrolo enrolo com as cores todas juntas.

Todas dá branco. É uma imagem bonita, tu arrumado ou arrumada num canto a emitir luz branca. De todas as cores de todas as personagens de todas as memórias, de todos os passados.

O passado tem-me passado (esta não era de propósito, mas achei que poderia ficar, e até parecer propositada. E vai mais uma) literalmente à frente nestes dias, como que a pedir que o arrume. Como que a pedir-me que me decida. Mas é muito, são muitas sinapses entre muitos neurónios. São muitas as palavras guardadas, e eu tenho o azar de ter uma boa memória verbal. Deve ser a minha personagem feminina, são as mulheres que se lembram de todas as palavras de todas as pessoas de todos os contextos, mesmo quando proferidas em simultâneo. E às palavras juntas as emoções, os sentimentos, as sensações viscerais, já não sei bem a distinção, e isso permite-te tomar decisões sobre o futuro. De cada vez que surgirem as palavras, ainda que só uma palavra, ou as cores, ainda que só uma cor, as imagens, os contextos, todos os triliões de neurónios que se ligaram antes se voltam a ligar entre si. Tudo para que tu sintas essa cor nessa palavra nesse contexto. Vê bem, são muitos neurónios, todos a disparar ao mesmo tempo, exactamente ao mesmo tempo. Enquanto outros triliões ficam parados, na labuta de arranjarem pão para comer durante a semana. Diz-me tu, não é a memória algo de arrepiar? Tudo isto para quê? E querem que eu mude a cor das palavras, ou dê indicações aos meus biliões e triliões e quatriliões de neurónios, que lhes diga que não quero que disparem, desta vez, em simultâneo?! Que não quero?! Serão outros triliões de neurónios a disparar “não quero!”. Uma luta entre neurónios. Não hei-de eu estar cansado ou cansada, no cansaço não existem questões de género. São muitos anos a juntar-te azul, amor. Levarei os mesmos anos a mudar-te de cor?

domingo, 8 de fevereiro de 2009

A ordem das coisas

Podes atender o telefone, por favor?

Vai ser para ti. Porque tenho de ser sempre eu? Estou?



Estou? Quem fala?

Sou eu, Vera.

Pedi-te que não me falasses.

Mas Vera, não percebeste. Tinha de contar o que se anda a passar. Fui falar com ele, e vim tão comovida, que não podia deixar de te dizer. Não a ti. Nem que fosse por aqui. Vim a pensar que ali estava o segredo do seu sucesso, na forma como simplesmente está.

De que falas? Por onde andas? Porque não falaste mais cedo?

Ora, sabes bem que não podia. Os teus silêncios autoritários não mo permitiam. Tu sabias quem eu era, não me quiseste ver. As minhas surpresas revelavam-me, mas nem sequer precisavas delas. Percebeste-me no primeiro instante, e sei que sabes. Não entendi como pudeste deixar escapar o que sabias ser tão verdadeiro. Talvez o mais verdadeiro. Será que a primeira impressão é a mais verdadeira? A imagem, a imagem…A imagem ficou aí tão feia, perante as memórias de outros momentos, que tive de apagar. Excluir, cliquei. Serviu apenas como último arranhão.

O que queres?

O que quero não sei. Resolvi surpreender-me a mim mesma, e fui até ao Seixal. Sabes como adoro viajar, desta vez de carro. Como será que as novas ideias nos surgem? Comecei a pensar no que me dá realmente prazer, e percebi que terá a ver com a aparente impossibilidade. A solução está lá, sei-o. Como sabia que tinha de falar, durante aquela sessão. E de repente fiquei presa, bloqueada, em branco. No piano um horror, porque teria de ser aquele ré a seguir ao dó, caso contrário estragaria tudo. Mas ali não. Como quando te deixei aquelas coisas à porta de casa. O melhor de mim à porta de tua casa. Ocorreu-me aquilo ali, naquele momento, sem saber muito bem porquê. Mas o que é certo é que o significado se tornou depois bastante perceptível. O absurdo. Será que a ordem, ou o significado, lhe demos nós depois, já na quentura da casa? Ou existe uma ordem no aparentemente caótico? Hoje em dia parece-me tudo tão óbvio que é até assustador.

Sabes que acho que constróis o óbvio. Terás de ter atenção à forma da construção, porque nos habituamos a construir o significado sempre da mesma maneira. A ideia não é nova para ti, a verdadeira transformação está na forma diferente da conjugação das partes no todo. O que te disseram no Seixal?

Quem é ao telefone, Vera?

Não me lembro bem. Ficou sobretudo a vontade. De tocar.

Não faço ideia. Acho que era engano.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Peter Pan

Dás-me uma bolacha?

Oh niña, más galletas no…que te quedas gorda.

Por favor, faço anos…

Y por que es tu cumpleaños, puedes comer todas las galletas que quieras?

Só pedi uma.

Que se passa hoje contigo? Porque não entras no jogo? Costumamos divertir-nos tanto com estas personagens…adoro quando te ris daquela forma descontrolada.

Aí está algo que gosto realmente de fazer. Rir.

Mira, Peter Pan está llamando por ti. Me dice que no le gusta mirar tu boca reindo y tus ojos no.

Que sabe o Peter Pan da minha vida? Que sabes tu da minha vida para pores o Peter Pan a falar de mim? Nada.

Dice que eras una niña muy grande cuando naciste. Con más de 4 kilos.

Como lo sabe el? Cuentame mi historia, por favor…sabes que apenas com uma história congruente posso mudar realmente.

Para que queres mudar? Gosto muito de ti exactamente assim.

É bom saber. Não sei se esta ideia de evolução nos é incutida de alguma forma, mas não consigo deixar de sentir que caminho num certo sentido que não sei qual é. Mesmo que a vida não tenha significado nenhum, se não lhe impuser algum, sinto-me completamente perdida. O passado. Se não lhe der coerência, imobilizo-me.

Mas a coerência é construída. Sabes disso melhor que ninguém. Como investigam a coerência das histórias? Que razões apontam para umas serem melhores que outras?

Pelo seu valor prático, dizem. Uma perspectiva sobre os mesmos acontecimentos apenas é melhor se permitir ao indivíduo viver melhor.

Viver melhor?

Mais adaptado.

Mais adaptado?

Que queres que te diga? Que mente analítica. Mais feliz, menos angustiado. Como se o traçar da linha te permitisse ver o amanhã. Ainda que o amanhã oposto, mas sempre é uma relação de oposição com o que existia. Se acordaste todos os dias de todos estes teus 31 anos, há uma probabilidade grande de acordares amanhã também. E se souberes bem como traçar essa linha da tua história, poderás torcê-la e retorcê-la e mudar-lhe a direcção mais facilmente, porque terás mais capacidade de olhar para o novo desenho e de pensar que ainda és tu. Ainda sou eu? Achas que ainda sou eu?

Y que te reías muchisimo, y desde siempre com los ojos.

Como lo sabe el? Como lo sabes tu?

No soy yo que lo sé. Eres tu que escribes. Eres tu el Peter Pan.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Escolhas?




Wow, estás a fazer o trabalho do colégio? É só para quinta!

É, eu sei…a mãe disse que os comprimidos devem estar a funcionar…

Bem, é que está a nevar lá fora, e eu pensei que talvez nós pudéssemos…Bem, eu não sei, diz-me tu…

Desculpa, não estava a ouvir. Tenho mesmo de terminar isto.





Wow, nevou mesmo a noite passada! Não é maravilhoso?

Tudo familiar desapareceu! O mundo parece renovado!

Um novo ano…Um novo e limpo começo!

É como ter uma grande folha branca de papel para desenhar!

Um dia cheio de possibilidades! É um mundo mágico, Hobbes, velho companheiro…vamos lá explorar!

sábado, 17 de janeiro de 2009

Um mundo ideal



Dirijo-te esta carta, ainda que me digas que o registo que mantenho deva ser sempre o mesmo. Mas sabes que faço o que me apetece, pelo menos com os meus textos. Bem sei, bem sei, também são teus. Mas podem ser dos dois, ou não? No fundo não são de ninguém, bem dizem os outros. Essa necessidade de compreender tudo, de compreender tudo. Tenho pensado que, se tomares consciência, talvez consigas sentir um pouco mais, e controlar um pouco menos. Porque lá no fundo sabes disto tão bem quanto eu. Estás a pedir-te em mim.

Que queres dizer com controlar?

Saber com o que contas, prever.

E isso é mau?

Nem mau nem bom, é o que é. E a constatação final do efeito espectacular de uma simples rabanada. Uma rabanada de vento, não das de comer, apesar dessas também me provocarem um grande efeito. Enfim, sabes que as tuas cadeiras estarão sempre no mesmo sítio, a não ser que tu as mudes. Maldita mania de mudar as coisas de lugar. Não te disse que este bloco tem de ficar aqui, exactamente aqui? Que é onde esteve sempre. Terá ido aí parar por acaso, mas passado este tempo acho que não haverá outro lugar mais lindo, mais perfeito, mais completamente organizado para ele. Para o bloco. Temos de impor ordem, não vá o caos tomar conta de nós, e esse não é nada calmo, ao contrário do do filme. Interrompi um pouco a escrita, para ver se desbloqueava. Andei a brincar com a gata. O que ela gosta de brincadeira. Mas logo passa à agressão, é ali uma mudança repentina que ainda não percebi. Pois, sei que as motivações não são em simultâneo. Nela. Mas o que no meu comportamento a faz ter essas passagens, não sei. Deixa o animal à vontade, lá estás tu. E deixo, mas gosto de perceber, que queres, tornou-se um hábito, um vício. Não te maravilha entender? Também tu deves ser um maravilhoso controlador, leitor.

E porque não podemos viver no caos? Tranquilamente? Tenho saudades…

Ora, não te culpes. Não distinguirias nada. E talvez te ajude. A sentir de novo. Já viste? É o controlo que te tira o sentir. E é o controlo que to poderá voltar a dar.

Como?

Como ainda não sei. Não poderás seguramente ser assim inseguro, e as duas palavras aparecem de seguida de propósito. Seguramente e inseguro. Não penses que as palavras aparecem por acaso. Nem que aparecem com um propósito concreto. Apenas aparecem, ou não, sendo isso a única coisa que importa, ou que poderá importar. Porque, de facto, o que interessa a minha intenção? Absolutamente nada. Claro, será uma forma de comunicarmos, de nos compreendermos, de nos controlarmos. Mas, neste caso, eu não faço mesmo ideia da tua interpretação das minhas palavras, nem tu a minha das minhas, o que torna a coisa bastante mais agradável, ou pelo menos mais libertadora, do que esta ideia doida a que chegámos de que, por alguma razão obscura, que se calhar não é assim tão obscura quanto isso, temos de saber exactamente a quantos centímetros está o bloco da parede. A quantos centímetros estás de mim. Isso pensas tu, vives nessa ilusão. Que sabes a quantos centímetros estou de ti. Estou mesmo aqui deste lado, a um clique, como no anúncio. Sou eu, de vestido azul. Aquele, o azul. É verdade, estou mesmo aqui. E no entanto tão distante. Existirei mesmo? Existo existo. Cuidado por favor. Um certo cuidado, caro leitor. Se precisas tanto de controlar, bem podias controlar um pouco o cuidado. Veio-me a ideia do Aladino à cabeça, e por alguma razão será. E princesas e castelos. E daqui retomo a nossa conversa. Se souberes que algo lá vai estar sempre, aprenderás a viver melhor nele. No caos. E podes subir para os tapetes que quiseres, que a queda não será grande. E há quem lá esteja sempre para ti.

Quem? Tu?

Eu?! É claro que não. Tu.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Frio (clique aqui)

Está frio.

Está. Um movimento de contracção. Diminui a entropia. Diferente daquela nossa conversa sobre a chuva.

Já houve um outro período de frio intenso. Não te lembras? Corríamos do restaurante para tua casa. E o meu trajecto era ainda um pouco mais longo.

Lembro-me…Gostas de mim?

Claro. Que pergunta, logo hoje.

Bem sei. Queria apenas ter a certeza, para poder estraçalhar com tudo. Foram duros tempos estes, em que não te sentia tão tranquilamente próxima. Finalmente vi-te pronta para ir ao cinema. Aviso-te desde já para manteres a calma.

De vez em quando tens conversas um pouco surreais.

Sabias que essa era a minha linha. Apesar de me fascinar essa tua racionalidade. Não só tua, mas dos que estão à tua volta. Sempre te fui dando um discurso simbólico e confuso. E chegámos mesmo a pensar naquele teu sonho em que eu entrava, lembras-te? E barquinhos, e espectáculos. O papel do inconsciente na criação. Tu lá foste indo, eu sabia que na tua nuca havia uma bicha daquelas. É na nuca não é?

É verdade. Sempre me viste esse meu lado.

Agora mantém a compostura. Só te fica bem.

Mas afinal o que queres? E quem és tu para te pores com esses moralismos?

Eu sou tu. E é claro que sabes disto.

Mas tu própria perdes. A compostura. Como é possível vires agora dizer-me isso?!

Estás doida. Ou és. Não entendo a tua exigência. E que agressividade essa. Deixa-me em paz! Será que não consegues entender o que te digo?!

Claro. Mas permanecerei sempre, ainda que penses que não. Minha bicha, ou bicha de mim. Repito-me, até ao dia em que simplesmente possa estar sem pudores. Sem teres de me ver de costas. Ah pois. Fecha esses olhos angelicais. E eu a fechá-los. Tonta. Minha diabinha. E sou. Diabinha de mim. Mas não penses que não fazes parte do sistema. Não há cá observadores independentes, e a lógica é circular. Querias que espingardasse por todos os lados, precisavas disso para te acalmar. Que o meu lado dramático gritasse. Será um pleonasmo? Pôr o dramático a gritar.

Não sejas pedante com as figuras de estilo. E põe um pouco de lógica nessa cabeça.

Lá estás tu com as críticas. Que te interessa a forma como escrevo? É engraçado vires-me tu falar de lógica. Arranjei duas lógicas diferentes. E ruas diferentes, e nomes diferentes, e casas diferentes. Catapum catapum, bem sabias que não era por aí. Queres ir tão rápido que vais aos tropeções. Cheguei a pensar que tudo era real, e não apenas da minha cabeça.

É sempre na nossa cabeça. E de qualquer forma, que diferença faz? Não estudas que apenas o significado interessa? E o que vais fazer com ele agora? Com o significado.

Comprimi-lo. Sintetizá-lo. Será mais simples agora, com o frio. Voltou o inverno. E mais uma vez eu também. Ao meu caminho.