terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Quero

Desculpa.

Eu entendo. Mas não sei se seria uma boa altura. Para me mostrares o quanto estou por minha conta.

Não foi estratégico.

Lá fiquei eu a dizer adeus, a dizer adeus. Estou tão cansada, João. Fiz como combinámos. Vim escrever.

Parece-me sensato.

Mas gerir-me é assustador. E se descubro daquelas minhocas espongiformes?

Minhocas espongiformes não existem. É uma expressão tua.

Talvez resida aí o problema. Se encontro minhocas espongiformes, e larvas escopalinadas, e unicórnios com dois cornos.

Já sabes tudo. É só pores em prática. Deixa a bicharada sair. E essa pergunta não é verdadeira, não era o conteúdo da resposta que querias de mim.

O que queria eu realmente de ti?

Expor-te.

Para quê?

Para que te protegesse. Mas não é de todo o meu papel.

Qual é o teu papel então? Quem decide que papéis temos nas vidas dos outros? E nas nossas? Não é o papel dos terapeutas? A forma, João. Não é o papel dos terapeutas o de mudar a forma da relação? Não quero ler mais livros, não me proponhas livros que eu estou cansada de tanta informação. Não quero pensar se estou mais magra, ou mais gorda, ou antes igual, não quero que ninguém me diga que devo começar as frases na positiva, não quero explicações, não quero começar a andar sem saber que estão a olhar a ver se caio, não quero pensar que não posso ter quem me contenha se antes não me contiver, não quero sentir isto que às vezes me aparece na pele, e no fígado, e nos pés, e se vai espalhando pelo corpo todo, não quero ser sol, nem lua, nem coisa nenhuma, não quero decidir-me, não quero pensar se devo falar ou ficar calada, não quero repetir-me mas se não repetir nada não sou ninguém, não quero acreditar nas estrelas de cinema nem em estrelas de nenhuma espécie, não quero acreditar naquela figura que me apareceu à noite, que me ia estrangular ou abraçar, que sei eu sobre a intenção dos outros, não quero rótulos, não quero palavras, não quero prestar atenção aos sinais, não quero mudar nem permanecer a mesma, não quero porque não quero lutar mais. Para ser outra pessoa ou para ser quem sou. Quem sabe? E eu não quero saber.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Amor azul

Amor. Dei conta hoje que amanhã é 2ª feira, e que mais uma semana começará.

As semanas não começam, meu amor. Não existem princípios ou fins para as coisas. Tudo isso é uma ilusão.

E esquecemo-nos de comprar pão congelado para o pequeno almoço. Porque és tão inteligente? Não suporto tamanha inteligência. Com isso dos tempos e das ilusões. Poderás apenas averiguar quando é preciso comprar pão para os pequenos almoços da próxima semana?

Lembras-te, amor? Daquelas palavras que dissemos, ainda que encabuladamente, porque as circunstâncias não eram as ideais. Porque insisto em ver-te o que não és? Dizem que os neuróticos só se lembram dos momentos bons, isto quando estão longe. E os outros, dos momentos maus. Sempre prefiro os primeiros.

Estás muito pensativo hoje. E dramático. Que andaste a ler?

Em nome da terra. A Teresa disse-me para descansar a cabeça a ler algo não muito pesado, mas é claro que peguei no que me lembrava ter-me feito derramar lágrimas. Por acaso, agora que penso, não me terá feito propriamente chorar. É de um dramatismo seco, duro. Como esta cara que te ponho, vês? Julgo que não devo fugir. Apenas ter consciência das lágrimas. Que achas?

Acho que de vez em quando devemos mesmo fugir. Desaparecer. Esse canto ainda não está bem. Experimenta outra vez. Põe o pincel azul.

Amor. Pensei em ir para o teatro, para poder ser. Esta nossa vida não me permite. Ser. Como poderei pôr o verde, e o azul, e o amarelo, e as cores todas? Temos tantas cores, e tantas formas, e tanta gente para ser, que não cabem aqui. Não caberão em lado nenhum. Como eu hoje, não caibo em lado nenhum. Só neste cantinho aqui, onde me enrolo enrolo com as cores todas juntas.

Todas dá branco. É uma imagem bonita, tu arrumado ou arrumada num canto a emitir luz branca. De todas as cores de todas as personagens de todas as memórias, de todos os passados.

O passado tem-me passado (esta não era de propósito, mas achei que poderia ficar, e até parecer propositada. E vai mais uma) literalmente à frente nestes dias, como que a pedir que o arrume. Como que a pedir-me que me decida. Mas é muito, são muitas sinapses entre muitos neurónios. São muitas as palavras guardadas, e eu tenho o azar de ter uma boa memória verbal. Deve ser a minha personagem feminina, são as mulheres que se lembram de todas as palavras de todas as pessoas de todos os contextos, mesmo quando proferidas em simultâneo. E às palavras juntas as emoções, os sentimentos, as sensações viscerais, já não sei bem a distinção, e isso permite-te tomar decisões sobre o futuro. De cada vez que surgirem as palavras, ainda que só uma palavra, ou as cores, ainda que só uma cor, as imagens, os contextos, todos os triliões de neurónios que se ligaram antes se voltam a ligar entre si. Tudo para que tu sintas essa cor nessa palavra nesse contexto. Vê bem, são muitos neurónios, todos a disparar ao mesmo tempo, exactamente ao mesmo tempo. Enquanto outros triliões ficam parados, na labuta de arranjarem pão para comer durante a semana. Diz-me tu, não é a memória algo de arrepiar? Tudo isto para quê? E querem que eu mude a cor das palavras, ou dê indicações aos meus biliões e triliões e quatriliões de neurónios, que lhes diga que não quero que disparem, desta vez, em simultâneo?! Que não quero?! Serão outros triliões de neurónios a disparar “não quero!”. Uma luta entre neurónios. Não hei-de eu estar cansado ou cansada, no cansaço não existem questões de género. São muitos anos a juntar-te azul, amor. Levarei os mesmos anos a mudar-te de cor?

domingo, 8 de fevereiro de 2009

A ordem das coisas

Podes atender o telefone, por favor?

Vai ser para ti. Porque tenho de ser sempre eu? Estou?



Estou? Quem fala?

Sou eu, Vera.

Pedi-te que não me falasses.

Mas Vera, não percebeste. Tinha de contar o que se anda a passar. Fui falar com ele, e vim tão comovida, que não podia deixar de te dizer. Não a ti. Nem que fosse por aqui. Vim a pensar que ali estava o segredo do seu sucesso, na forma como simplesmente está.

De que falas? Por onde andas? Porque não falaste mais cedo?

Ora, sabes bem que não podia. Os teus silêncios autoritários não mo permitiam. Tu sabias quem eu era, não me quiseste ver. As minhas surpresas revelavam-me, mas nem sequer precisavas delas. Percebeste-me no primeiro instante, e sei que sabes. Não entendi como pudeste deixar escapar o que sabias ser tão verdadeiro. Talvez o mais verdadeiro. Será que a primeira impressão é a mais verdadeira? A imagem, a imagem…A imagem ficou aí tão feia, perante as memórias de outros momentos, que tive de apagar. Excluir, cliquei. Serviu apenas como último arranhão.

O que queres?

O que quero não sei. Resolvi surpreender-me a mim mesma, e fui até ao Seixal. Sabes como adoro viajar, desta vez de carro. Como será que as novas ideias nos surgem? Comecei a pensar no que me dá realmente prazer, e percebi que terá a ver com a aparente impossibilidade. A solução está lá, sei-o. Como sabia que tinha de falar, durante aquela sessão. E de repente fiquei presa, bloqueada, em branco. No piano um horror, porque teria de ser aquele ré a seguir ao dó, caso contrário estragaria tudo. Mas ali não. Como quando te deixei aquelas coisas à porta de casa. O melhor de mim à porta de tua casa. Ocorreu-me aquilo ali, naquele momento, sem saber muito bem porquê. Mas o que é certo é que o significado se tornou depois bastante perceptível. O absurdo. Será que a ordem, ou o significado, lhe demos nós depois, já na quentura da casa? Ou existe uma ordem no aparentemente caótico? Hoje em dia parece-me tudo tão óbvio que é até assustador.

Sabes que acho que constróis o óbvio. Terás de ter atenção à forma da construção, porque nos habituamos a construir o significado sempre da mesma maneira. A ideia não é nova para ti, a verdadeira transformação está na forma diferente da conjugação das partes no todo. O que te disseram no Seixal?

Quem é ao telefone, Vera?

Não me lembro bem. Ficou sobretudo a vontade. De tocar.

Não faço ideia. Acho que era engano.