sexta-feira, 24 de abril de 2009

Antárctida

Meu querido. Escrevo-te esta carta, para ver se me percebo. E para que valides o que escrevo, que também sou eu. Queria contar-te o que ando a fazer, de algum modo ando a precisar de simplesmente descrever o meu dia, e de partilhar a árvore aqui mesmo junto à janela, e o parque, e o autocarro a passar cheio de gente. Adoro ver as pessoas no autocarro, é uma beleza de gente. Falaram-me entretanto da eco para desmarcar. Porque não será possível algo simples, como o autocarro que passa? E da Dinamarca, nada, nem um sinal. Esteve sol hoje, vesti algo mais fresco. Mas sabes que às vezes tanta leveza perturba-me, esta leveza do sol a brilhar dispersa-me. O frio concentrava-me, ficava aqui feita bloco de gelo, o que às vezes era um perigo, porque assim que surgia o sol eu explodia, ainda que apenas já de noite. Juntei “apenas” e “já”, mas não me soou bem. Que achas?

Continua.

Bom. Apenas já de noite. Esse vulcanismo tão característico trouxe-nos dissabores, mas que hei-de fazer? Experimentei fazer como nos géisers, deixar-me sair assim aos poucos, mas sentia que não era eu em altura nenhuma, entendes? Seria uma coisa chocha, de vez em quando saía um rim, depois um fígado, e sabes que isolados não têm graça nenhuma, e sobretudo deixam de fazer sentido, o sentido está na relação. Não dizes que a união faz a força? Aí está outro significado para a mesma ordem de palavras. São fantásticos aqueles dias em que está frio e sol ao mesmo tempo, de uma inteireza avassaladora. Isto já vai além da descrição a que me propus.

Continua.

De uma inteireza avassaladora. Passei então ali pela lavandaria para pôr o tapete a lavar, e telefonei para a contabilidade para saber dos recibos. Fui depois ver um filme muito curioso, havias de gostar. Um conjunto de personagens que se encontrava na Antárctida, encontraram-se ali no fim do mundo porque acharam que o meio estava vazio. Terminava um deles dizendo que o mundo tinha consciência de si através do nosso reflexo. Achei uma boa imagem e resolvi partilhá-la contigo. Falei-te. Tu nem notavas, mas eu tentava desbobinar a minha vida em cinco minutos, julgo que para mantermos uma qualquer ligação, mesmo contigo que nem sei quem és. Mas ia jurar que andas escondido por aí. Não andaremos todos? E a seguir terminava com uma frase sobre nós, talvez no futuro. O que achas?

Sê mais sucinta. E experimenta virar-te um pouco mais de lado para a câmara. Quando chegares a meio viras-te de frente, para que te vejam bem. Misturas assim o mistério com a transparência. Pode ser? Podes recomeçar.

Meu querido. Escrevo-te esta carta, nem sei bem porquê, nem para quê. Apenas porque tenho de ser por algum lado. Contigo. Talvez na Antárctida.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A verdade do fumo

Olá.

Bom dia.

Desculpe, é que estava a olhá-lo, e a constatar que estava no meu sonho de 6ª feira passada.

Como?

O que lhe digo. Tenho fraca memória visual, mas quando reencontro alguém, sei-o. Eu estava a fumar um cigarro e estava comigo, também a fumar.

A menina não fuma.

O senhor não sabe nada sobre mim. Não fumo, mas fumava no meu sonho.

Nunca poderia estar no seu sonho, nunca nos vimos.

Lamento desiludi-lo, mas estava. Aceite. Pode aceitar? O verdadeiro amor está na aceitação. Quando aceitamos que não poderemos compreender tudo. Não pode controlar o meu sonho. O meu sonho é meu.

Não tenho amor por si, não a conheço.

No meu sonho tinha. E nunca sentiu amor por desconhecidos? Às vezes estou nesse estado. Queria agarrá-lo.

A mim?!

Não, ao estado. Já não me agarro a pessoas, mas ainda me tento agarrar a estados. Até constatar que são como as pessoas. Fogem-me. Apesar de eu ter desenvolvido esta minha capacidade de entender o que certos gestos, juntamente com certas palavras e certos silêncios, poderão querer dizer. Por exemplo, esse seu jeito com a mão. E esse olhar desviado quando lhe falo em agarrá-lo. Tinha colocado aqui mais uma ou outra descrição sobre si, mas senti, ou pensei, o leitor sabe que por vezes se confundem, que aumentar o pormenor retira a verdade à ideia. Mas não o quero maçar com as verdades, sei que elas podem ser muito maçadoras. Andam às voltas a maçar, a maçar, podes-me trazer um copo de água, gostas desta roupa nova que trago hoje, e depois uma birra, um pequeno drama, só para nós sabermos que existem. Voltando aos estados. Partilhava noutro dia consigo, chamavas-te Rafa no meu sonho, calculo que de Rafael, partilhava consigo a alegria pela beleza do que nos foge. Saiu-me assim, compreenderás? É o mais perto da verdade que me vem à cabeça. Já quis compreender a beleza, mas assim que tento agarrá-la deixa de existir. Aqui um equilíbrio…porque foi a compreensão que me permitiu apreciar a beleza, inclusivamente a de não compreender.

A menina é louca.

Estava louca por ti no sonho, Rafa. Estávamos os dois loucos a partilhar a beleza da vida. Era tão bom, sentíamos os dois a leveza da transitoriedade. Chorávamos, Rafa, tal era a felicidade de sentir que sentias que eu sentia a mesma coisa. O que se pode pedir mais da vida? Éramos transparentes, creio. Não, invisíveis. Ninguém nos via no jardim, só se via o fumo dos cigarros. A Sra. Miralina comentou até comigo que foi notícia o facto de se ver fumo de tabaco sem corpos que o causassem, e bem sabes que as pessoas procuram as causas para as coisas, ainda mais quando metem fogos e fumos e assim. Mal sabiam eles que tudo isso fazia parte do meu sonho. Dei então corpos ao fumo, também eu caí no erro das outras personagens, e quis compreender. E nesse instante, nesse preciso instante, deixei de te amar, e tu a mim.

domingo, 5 de abril de 2009

Traição

Estás aí?

Espera. Tive de te deixar por uns momentos.

Vem comigo ver “o som no cinema”. O que te fez ir-te embora assim, sem dizeres nada, ao fim de tanto tempo de união?

O que sentes quando estou?

Como se uma imagem me perseguisse. Sobrevoa-me. És quem me permite observar-me com tranquilidade na minha agitação.

De que tens medo? Se tiveres medo que eu desapareça deixas de me ver.

Da ilusão. Sabes que tudo isto é uma invenção. Estas várias formas que assumimos. A consciência da ilusão é aterradora. Por isso iludo-me pensando que não tenho consciência dela. Da ilusão.

Iludes-te conscientemente para enganar a consciência da ilusão? Que trapalhona és. E eu serei então mais uma invenção. Que nome tenho?

Não te dou nome, para que existas mantendo a tua essência.

Não será o contrário? Se me deres um nome passarei a existir, pelo menos na tua cabeça. Eu sou a…

Não! Não quero dar-te nome, não quero saber quem és. Assim existes de certeza, ainda que sem nome. Porque se não existisses eu não saberia que estou agora com o meu polegar na boca, e a constatar a forma do meu dedo. Desde pequena que gosto de fazer isto. Imagino o dedo, a partir do que sinto nos lábios. Também faço corações com a língua a bater nas gengivas. Depois ponho o joelho assim, e amo profundamente a marca que lá está, observando-a a mover-se enquanto mexo o joelho. E tu sempre a ver-me. És a única que sabe disto. Não tenho de te explicar porque acabei a fazer corações com a língua, até porque não há razões. Espero que nunca me traias.

Não é nas gengivas que fazes. É nos dentes.

Nos de baixo. Que me perdoe a minha querida amiga, mas não sei o nome. Ficaria aqui tão bem. Espera um pouco, vou procurar no Google. Incisivos centrais. Que fácil era.

Podes colocar-me a trair-te. Podes colocar-me a fazer o que quiseres. Improvisa.

Que dizes? Não te posso manipular. O processo é o contrário. És tu quem observa.

Observo mas não manipulo. E foste tu que me criaste. Enfim, não sei quem terá criado quem. Experimenta dar-me ordens. Mamã dá licença? Desculpem-me, também já fui criança e estas coisas vêm-me à cabeça. Quantos passos?

Dá então dois passos para a esquerda. Dois à formiga para a esquerda.

Já está.

Incrível. Vejo-te dois passos deslocada para a esquerda. Ainda que pequenos, mas visíveis.

Vês? Que te disse? Fazes o que quiseres comigo. Agora vejo-te de perfil.

Tu não tens lugar. És apenas uma presença.

“Presença” é palavra. Não me definas, já que não queres que me perca. Andaria aí a gritar que sou presença, que sou presença. Presente! Diria. Que diz esta? Alguém lhe perguntou alguma coisa? Diriam. Imaginas alguém a compreender isto? Se fosse a ti pensava um pouco antes de escrever. Minha pequenina. E não penses que estás a ficar doida, porque senão a doideira passa a existir também para os outros, o que será um problema, porque tu já estás habituada mas os outros não. Dirão que me inventaste, e que te inventaste, para dares coerência à história, e poderão até não andar longe da verdade, mas não tens de lhes contar os segredos todos. A do coração com a língua, por exemplo. Porque lhes contas?

Eles quem? Apenas tu sabes, juro-te! É segredo nosso. A não ser que tu me traias. E eu nunca te poria a trair-me.