segunda-feira, 11 de julho de 2016

Lugar




Fechei as portas e as janelas e os olhos e a boca e os ouvidos e os cabelos e a pele, que é a única forma que conheço de começar. Aqui, tinha já vivido muitas coisas, em três horas pode-se escrever muito. De três horas faço 3 dias, que é como quem diz 30 anos, oitos fora zero. Entretanto fui respirar, que é como quem diz transformar o que via enquanto a vida se passeava por mim no café em frente à árvore em frente ao parque infantil. Diz-se que o processo respiratório é o mecanismo através do qual obtemos água e energia, mas diz-se tanta coisa.

Quando eu tinha 8 anos, existia na minha escola uma estrutura de ferro em forma de U invertido, isto se considerarmos o chão a base, o que nem sempre acontece na vida real/imaginária. Mas enfim, este é um texto descritivo, que tem como objectivo primeiro/último que o leitor me ajude a manter a memória, ou talvez a fazê-la desaparecer. Tudo é relativo/história, e até a sensação de estar tudo ao contrário depende do referencial/de ti.

“e um dia decerto mesmo duvidamos, dia não tão distante como nós pensamos, se estivemos ali se madrid existiu”1

Ali, pendurava-me no topo da estrutura, com os pés presos na cruz de ferro, de cabeça para baixo. Ou talvez fosse para cima, pois nesses momentos a vida de repente estava certa, e eu não me lembro de alguma vez me ter sentido tão vertical

 - Olha que cais

 - Posso lá cair do chão?

mas eu sabia lá. Naquele lugar, havia uma estranha certeza em mim de que jamais os meus pés se soltariam do ferro que estava no céu. Por cima da minha cabeça, a uns metros, estava a areia com que gostava de sujar as minhas mãos, e em volta os baloiços, as salas de aula, o muro que separava os pequenos dos grandes, as escadas para a biblioteca, o tanque, as pedras, o corrimão verde, a árvore ao lado

- Olha que te perdes

 - Posso lá perder-me de mim?

tudo no seu devido lugar. Era um lagar silencioso, onde se esmagavam as uvas da vindima, quando eu tinha 8 anos, oitos fora nada. Pisava o chão de galochas, ou mesmo descalça, de cabeça para baixo tendo o céu como limite/chão. No processo de transformação da uva em vinho, diz-se, o esmagamento deve ser leve, para que não afecte a semente e não traga amargura ao vinho

“que embora tudo mude nunca muda, ou se mudar que se não lembre de morrer”1

mas diz-se tanta coisa, e eu sabia lá. Naquele lagar, eu só queria ouvir o silêncio das minhas pernas enérgicas e do líquido a aumentar de volume, quase até às minhas costas.

“Terá mesmo existido o sítio onde estivemos? Aquela hora certa aquele lugar?”1

Ficava ali, pendurada, a olhar para a areia por cima da minha cabeça e para o líquido a rodear-me a pele, os cabelos, os ouvidos, a boca, os olhos, as janelas e as portas, que é a única forma que eu conheço de terminar, que é como quem diz começar, e tudo o resto é história. Mas diz-se tanta coisa.

Eu
sei
lá.


1 Excertos retirados do poema Muriel, de Ruy Belo