Estás aí?
Espera. Tive de te deixar por uns momentos.
Vem comigo ver “o som no cinema”. O que te fez ir-te embora assim, sem dizeres nada, ao fim de tanto tempo de união?
O que sentes quando estou?
Como se uma imagem me perseguisse. Sobrevoa-me. És quem me permite observar-me com tranquilidade na minha agitação.
De que tens medo? Se tiveres medo que eu desapareça deixas de me ver.
Da ilusão. Sabes que tudo isto é uma invenção. Estas várias formas que assumimos. A consciência da ilusão é aterradora. Por isso iludo-me pensando que não tenho consciência dela. Da ilusão.
Iludes-te conscientemente para enganar a consciência da ilusão? Que trapalhona és. E eu serei então mais uma invenção. Que nome tenho?
Não te dou nome, para que existas mantendo a tua essência.
Não será o contrário? Se me deres um nome passarei a existir, pelo menos na tua cabeça. Eu sou a…
Não! Não quero dar-te nome, não quero saber quem és. Assim existes de certeza, ainda que sem nome. Porque se não existisses eu não saberia que estou agora com o meu polegar na boca, e a constatar a forma do meu dedo. Desde pequena que gosto de fazer isto. Imagino o dedo, a partir do que sinto nos lábios. Também faço corações com a língua a bater nas gengivas. Depois ponho o joelho assim, e amo profundamente a marca que lá está, observando-a a mover-se enquanto mexo o joelho. E tu sempre a ver-me. És a única que sabe disto. Não tenho de te explicar porque acabei a fazer corações com a língua, até porque não há razões. Espero que nunca me traias.
Não é nas gengivas que fazes. É nos dentes.
Nos de baixo. Que me perdoe a minha querida amiga, mas não sei o nome. Ficaria aqui tão bem. Espera um pouco, vou procurar no Google. Incisivos centrais. Que fácil era.
Podes colocar-me a trair-te. Podes colocar-me a fazer o que quiseres. Improvisa.
Que dizes? Não te posso manipular. O processo é o contrário. És tu quem observa.
Observo mas não manipulo. E foste tu que me criaste. Enfim, não sei quem terá criado quem. Experimenta dar-me ordens. Mamã dá licença? Desculpem-me, também já fui criança e estas coisas vêm-me à cabeça. Quantos passos?
Dá então dois passos para a esquerda. Dois à formiga para a esquerda.
Já está.
Incrível. Vejo-te dois passos deslocada para a esquerda. Ainda que pequenos, mas visíveis.
Vês? Que te disse? Fazes o que quiseres comigo. Agora vejo-te de perfil.
Tu não tens lugar. És apenas uma presença.
“Presença” é palavra. Não me definas, já que não queres que me perca. Andaria aí a gritar que sou presença, que sou presença. Presente! Diria. Que diz esta? Alguém lhe perguntou alguma coisa? Diriam. Imaginas alguém a compreender isto? Se fosse a ti pensava um pouco antes de escrever. Minha pequenina. E não penses que estás a ficar doida, porque senão a doideira passa a existir também para os outros, o que será um problema, porque tu já estás habituada mas os outros não. Dirão que me inventaste, e que te inventaste, para dares coerência à história, e poderão até não andar longe da verdade, mas não tens de lhes contar os segredos todos. A do coração com a língua, por exemplo. Porque lhes contas?
Eles quem? Apenas tu sabes, juro-te! É segredo nosso. A não ser que tu me traias. E eu nunca te poria a trair-me.
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5 comentários:
Ufff... ao menos aqui sinto-me bem para dizer que desenho as letras dos outdoors com os dentes :)
Depois, quando sinto que alguém ficou a olhar para mim, páro e faço um ar distraído =P
Mas essa dos corações é muito querida... shhh... é segredo!
Um dia ainda vão comparar os seus textos ao 'meu' Pessoa ;)
Beijinhos ***
Inês
A sério que faz as letras com os dentes?! Ainda bem que me traí, sempre nos sentimos mais acompanhadas nestes hábitos...;)
Beijinhos
Um dos teus melhores textos, psicologica e filosoficamente profundo (quem somos nós, onde é que está o nosso ser?) mas tragicamente cruel, quase perverso: o final em gancho, que revela a traição profunda que é escrever sobre si próprio.
Mas muitos parabéns. O texto é magnífico, realmente extraordinário.
Isso foi uma pergunta retórica? Sim, é verdade... às vezes nem eu própria dou conta que o estou a fazer até alguém olhar para mim. Outras vezes é consciente... Ainda bem que se 'traiu', quer dizer que não sou a única pessoa do mundo com estes hábitos =D aweeeeeeee
Quanto à fragmentação do 'eu', aos vários 'eus', às várias pessoas que coexistem em nós, é demasiado complexo e tenho medo de errar a interpretação... não sei se conheço essa sensação. Conhecerei? (agora vem o inevitável Pessoa) 'Não sei e sei-o bem'. Nunca me permito estar muito tempo acompanhada comigo!
Beijinhos ***
Inês
Obrigada anónimo :) É tão bom receber as tuas palavras...e perceber que sentiste o meu texto ;)
Beijinhos muitos
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