terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A mulher que ia ao pão e que eu encontrei electrocutada



Tinha fugido numa ida ao pão e tinha voltado rápido, era tarde e queria aquecer-me, não me lembro bem. Foi num dia certo, numa hora certa (certas são as horas, verdes são os campos) que devia ser de manhã porque eu estava ainda cheia de frio da ausência de casa. Não me lembro do poema não me lembro da professora não me lembro de quem tinha ao lado não me lembro da hora,

É tarde já1

apenas que tinha frio quando estas palavras se me entranharam, e não adianta dizeres-me para vestir mais roupa ou que ando mal vestida porque é de outra ausência que se trata. Na sala de aula as mesas tinham tampos cinzentos que estavam riscados e onde por vezes se encontravam, por baixo, pastilhas mastigadas. Um dia,

aquela hora certa, aquele lugar2

estava distraída a fazer desenhos com a caneta fechada nas calças de fato de treino porque havia ginástica, e afinal a caneta não tinha tampa e eu fiquei com as calças cheias de corações mal feitos, talvez porque não estava a olhar para o que estava a fazer, não me lembro. Apenas que fiquei perplexa a olhar para as calças desenhadas a pensar se sairia se lavasse, numa vaga esperança que os corações ficassem entranhados para sempre na memória

às vezes se te lembras2

e ficaram. E não adianta dizeres-me para vestir mais atenção ou que ando distraída e perco tudo, porque é de outra ausência que se trata. Há palavras que nos ficam presas na pele e que não saem por mais que a gente tire a roupa toda, porque se transformaram em silêncios de que agora não me lembro, que são os últimos a ir-se embora. Por vezes passo horas a ouvir poesia sem perceber nada dos poemas, rigorosamente nada. Ouço-os tantas vezes que as palavras se entranham na minha memória/ pele, como quando estudava piano e as teclas começavam a fazer parte dos meus dedos, ou talvez como quando a tua memória/o teu sorriso começou a fazer parte do meu.

Correr, navegar, morrer naquele sorriso3

Eu passo horas a fazer títulos de coisas sem que, pelo menos aparentemente, algum dia venham a ter palavras lá dentro. Não me lembro da cara não me lembro do dia não me lembro da hora, apenas que me disse que teria frio. Despiu-se/despediu-se rapidamente para poder olhar melhor para os corações que lhe tinha escrito numa hora certa, naquele lugar. Encontrei-a assim, nua de palavras e cheia de silêncios. Acho que são os últimos a ir-se embora mas não sei bem, não me lembro, porque

É tarde já, e ainda é cedo.1



1 Fernando Pessoa
2 Ruy Belo
3 Eugénio de Andrade