sexta-feira, 13 de março de 2009

Excepções

Minha querida, que leve estás. Pareces um balão a flutuar. É como te sentes?

Humm, não será bem isso…Apenas esta sensação…

E não será de assinalar, de marcar, de dar um nome a essa sensação? Para que possas recordá-la quando te pedirem as excepções aos momentos de angústia. Que te aconteceu? Onde foste? Com quem estavas?

Vim agora do cinema. Fui sozinha, João. Uma outra via, uma outra possibilidade. Uma história diferente, e parece que de alguma forma condizente com as novas experiências, e isso fará toda a diferença para uma verdadeira melhoria. Bem sabes como lutava contra aquela vida limpa e climatizada. A Joana disse-me no outro dia que eu estava com bom aspecto.

Parece-me bom, embora não entenda completamente o que dizes.

Falávamos da resiliência, e do que isso significaria. No congresso bem nos disseram que ela só existe para quem a examina. Não será assim com todos os conceitos? Um prazer estar no cinema sozinha, e poder chorar à vontade sem que olhasses para mim sem olhar, e pensasses sobre mim sem pensar, e partilhasses comigo sem partilhar. Falavam de vidas limpas e climatizadas, também. E vim a pensar pelo caminho se a outra via não será também ela uma história.

A outra via é contra a história pré-estabelecida.

Pois será. Mas pergunto-me se a história contra a história não será também ela pré-estabelecida. Entendes? A excepção também é necessária, quase exigida. Para que te possas sentir tão abençoado por te ter calhado essa. Para que possas pensar que estás a atingir a tua tão almejada estabilidade, João. A minha turbulência justifica-te. Não me fales de altos e baixos, nem de intranquilidades, nem de intensidades, nem de todas as palavras que tanto gostas de aplicar nos mais variados contextos. Já te disse que ninguém quer saber das tuas justificações, nem do que fazes ou não fazes com a tua vida. Não é sobre ti que pensam quando pensam em ti. Quando pensam nesta tua vida, com os teus filhos, e a tua mulher, e a tua casa, e o supermercado, e o condomínio, Rosa, como poderás ser a administradora do teu condomínio? E o pingo doce, e o dinheiro, como gastarei tanto dinheiro sem notar, e os esgotos, e a factura da zon, e a internet que não funciona, desliga o fio do computador, depois da tomada, e volta a ligar pela ordem inversa, liga e desliga e liga e desliga, sempre com esta ordem. Não quero acreditar que a minha luta esteja pré-estabelecida, porque deixará de ser a minha luta, e continuará a ser de uma qualquer super e hiper e megaestrutura. As prateleiras estão arrumadas de forma a retirares o amaciador a seguir ao shampô, e é verdade, que liso que o cabelo fica. Tudo está arrumado, rigorosamente arrumado, até quem sabe religiosamente arrumado. Menos o meu carro.

4 comentários:

Anónimo disse...

Li e reli este texto antes de vir comentar... Interpretei-o, talvez, de acordo com as minhas vivências.
Parece-me que fala sobre rotina, mas seria mais correcto dizer que fala acerca da 'norma'.

Fez-me lembrar um filme muito bonito 'Ma Vie en Rose'(depois empresto-lhe), onde as pessoas vivem num bairro perfeito, saem todas de casa à mesma hora... até que alguém quebra a aparente calma do bairro.

E com esta conversa toda, quero apenas concluir que o que torna cada pessoa especial é aquela característica que é só dela ou que nem sempre se enquadra naquilo que a sociedade vê como o 'normal'

Beijinhos ***
Inês

Ruben disse...

Sim! Que belo texto.
Asimilar o pré-adquirido para que pareçamos normais.
Que me perdoem os normais, mas a resposta é "não". Ler o jornal de trás para a frente, ir à mercearia onde o queijo está ao lado do amaciador do cabelo, deixar que o carro se lave quando o clima o permite (chuva), discordar do superior (sempre que possível), sair antes da hora e não esperar pelas fatídicas 17:30, entrar na loja dos fatos e pedir um copo de água... correr nos corredores das clínicas psiquiátricas, pedir desculpa aos espelhos quando esbarramos neles...

Ruben disse...

*assimilar

inês disse...

Inês,

É engraçado, o filme que tinha acabado de ver tratava de algo muito parecido...:)

Ruben,

Só tu para te lembrares do espelho! Saudades das correrias na clínica... Já estou ansiosa que voltes para fazermos um disparate qualquer e a seguir nos rirmos mesmo muito.


Beijinhos aos dois