quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Só um texto

E agora tu morrias.

Não! Como podes pensar matar-me?

Calma, tudo isto é a fingir. É só um texto.

E há algo mais real do que um texto?!

Meu bem, vamos ser práticos, escusamos de tentar enganar o leitor. A ideia principal é a de que queremos matar-te a fingir para que possas viver a sério. E partilhando assim as nossas fortes e ousadas intenções, talvez o leitor se sinta compelido a ajudar-nos, que sabemos bem não existir melhor estratégia do que o voto de confiança para que haja uma participação activa. Pedimos assim, caro leitor, a sua máxima atenção, ainda que saiba de antemão, não apenas o final da história, mas também a forma geral da narrativa. Fomos então buscar espadas, punhais, espingardas e todo o tipo de ferramentas usualmente utilizadas para matar alguém. No entanto, para a morte ser a fingir, o processo tem de ser lento, meu bem, e talvez tenha sido por isso que a Tosca se enganou. E assim te explico todo o meu cuidado, desculpa a lentidão, mas prezo a tua existência real. A pressa é inimiga da perfeição, e a arte de fingir é tão difícil. Vê bem, meu velho, para poderes continuar vivo em mim não pode haver enganos, todos os fingimentos têm de ser levados com a maior seriedade. Não quero ver ninguém distraído, está uma vida em jogo. Digo-te, não suportaria constatar que morreste a sério passando a viver a fingir, não suportaria. Quando era criança tive de abater uma cadela e nesse dia, sabes o que fiz? Dei-lhe um salame de chocolate inteiro. Estou convencida de que isto não foi só para que ela tivesse um último momento de intenso prazer, mas também para dar-me tempo de matá-la. Enquanto ela devorava o doce lembro-me de observar as minhas lágrimas a cair e de pensar

Não me posso esquecer desta imagem

sabendo que me iria ser útil para ter a certeza profunda de que continuaria viva. No fundo servirá para isto a memória, para podermos morrer e renascer quantas vezes quisermos, com a segurança de que todas as mortes são a fingir, para que as vidas possam ser a sério. Temos de acautelar-nos, que nas cenas demasiado rápidas as imagens são por vezes tão confusas que a vida se pode confundir com a arte. Seria catastrófico que ao escrever a tua morte morresses de vez, sem me dares tempo de te perdoar teres morrido ou de ter já saudades tuas contigo ainda ao meu lado. Já alguma vez te aconteceu? Teres saudades de alguém que está ali contigo. E tudo isto que te disse ao longo destas linhas fui eu a fazer tempo, tentando encontrar a última imagem. De modo que meu bem, agora tu morrias. Mas antes viravas-te para mim e enquanto eu guardava essa imagem na memória tu dizias-me, baixinho:


- Não te preocupes, nina. É só um texto.