quinta-feira, 15 de abril de 2010

Aikido

Alto! Parai! Avisto alguém ao longe.

Cavaleiro, tenho algo para entregar-vos. Peço-vos paciência, pois esta linguagem é nova para mim. Estou habituada a viver neste outro século, em que a lentidão é camuflada pela rapidez tecnológica. E cavaleiro, sabeis bem que viajar para o futuro através do passado é uma ideia peregrina. Pelo menos quando a expomos assim, sem antes apresentarmos as premissas e o tipo de raciocínio efectuado que nos permitem averiguar sobre a sua validade. Retirarei as minhas botas enquanto vos falo, para me assegurar de que mantenho os pés bem assentes na terra. Manterei este anel que me haveis oferecido há já anos, esperando que me ajude a ligar os dois planos, a ficção e a realidade. Gostava que os leitores pudessem aceder a esta imagem, esta aqui, que eu calculo que se uma imagem for guardada por muitas pessoas ela permanecerá mais vívida em mim, é o princípio sistémico sobre o efeito do todo no indivíduo. Sei bem, cavaleiro andante, que nenhuma imagem, nenhum texto, nenhum símbolo poderá condensar-me a vida, porque ela teima em passar, assobiando. Mas meu bem, apenas quando as imagens se tornam nítidas eu posso permitir que elas adquiram a sua liberdade, imaginai imagens foscas por aí a pairar, seria inaceitável, incompreensível. Perdoai-me, disperso-me. Dizia que seriam necessárias imagens de antes para que pudéssemos viajar no futuro, teremos de ir atrás para podermos ir à frente, e vendo bem tudo isto não será tão peregrino assim.

Porque me observais tão atentamente?

Permiti-me que continue o meu discurso, segura de que terminarei respondendo às vossas questões, mesmo sem querer. Numa lógica linear, o movimento seria simples e directo, consistindo num afastamento, como quem luta contra um adversário e lhe espeta a espada assim, com este movimento seco (imaginai o movimento brusco acompanhado de uma cara de repúdio). No entanto, sabeis como em seguida carregamos o fardo dessa brusquidão, insistindo em repetir o movimento vezes sem conta, numa busca incessante pelo dia em que, cremos, algo para sempre se modificou. No entanto, pensemos os dois em conjunto, a libertação exige a pertença, quem inventou isto não estava para brincadeiras simplistas. Isto para explicar-lhe(s) esta procura incessante pelas partes de mim que andam por aí espalhadas pelo mundo, um braço aqui, uma perna acolá. Entende, querido, terei antes de juntar todos os teus bocadinhos, o que é o mesmo que juntar todos os meus bocadinhos (posso aqui dar-me a estes luxos de não fazer distinções), e trazê-los comigo assim, neste movimento contínuo, como no aikido (imaginai um movimento lento, harmonioso). Observo por isso atentamente a vossa sobrancelha, que curiosamente forma um quadro conhecido na sua relação com o meu olho, na esperança de que esta imagem nítida fique para sempre guardada. Em troca desta imagem ofereço-lhe uma das minhas tranças. Por favor cuide bem dela, é uma trança mágica. E assim nessa união poderemos, com toda a segurança, ser livres.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Charlie?

Charlie…

Querida.

Compraste-me bolachas? Charlie, queria dizer-te, antes que o momento passasse. Por vezes surge uma certeza que permite a felicidade na dúvida. Como se todas as perguntas sobre todas as espécies de animais fossem abarcadas por um ponto. Pensando bem, um ponto talvez não seja a melhor forma de representar isto que sinto, teremos de criar um qualquer outro sinal de pontuação.

Não tem conteúdo visível isso que sentes. Como o silêncio de que precisas para saber que o som existe. Talvez uma pausa? Trouxe também pão, havia pão quente.

Charlie querido, afirma por favor a tua existência, diz-me que és tu que aí estás. É que nota, a certeza surge sempre na tua ausência. Eu olho para ela e rio-me, que eu sei (nesse momento eu sei tudo) que isso é ela a ver se eu sobrevivo à dúvida sobre o facto de existires, mesmo quando te vejo (pausa para respirar. Silêncio, que talvez esta seja a ideia principal do texto). Rio-me assim disfarçadamente, como quem não quer a coisa, na esperança de que a dúvida não se instale e não me estrague o meu rico banho. Na tua ausência eu sei-te concentrado, um silêncio constituído por todas as séries harmónicas. Talvez por isso ela te tenha feito boneco neste texto, dando assim ideia aos leitores que existes não existindo. Porque essa é a verdade, e ela gosta de ser verdadeira nas suas descrições. Isto independentemente das coisas existirem sem quem as observe, ou das múltiplas interpretações que poderás dar às minhas palavras, isso serão outras histórias. Nesse momento de silêncio em que eu perco a noção do tempo, talvez por não se ouvir o tic tac do relógio, tu transformas-te numa real personagem, querido Charlie. E aqui a palavra “real” assume propositadamente dois significados, que no silêncio todas as minhas personagens são reis e rainhas. Vê tu que diz o dicionário que o significado da palavra “real” é oposto a “imaginário”. Dizem que terás de ser palpável para seres real, querido Charlie, que cruéis são para ti! Enfim, numa outra definição terás antes de ser genuíno, e isso eu posso garantir-lhes até mesmo em frente a um juiz. Digo-lhe:

- em primeiro lugar, sr. dr. juiz, todas as personagens aqui são genuínas, não lhe seria útil a ela criar personagens falsas. Este será já um argumento de peso, que o sr. dr. juiz bem sabe que no mundo de hoje ninguém cria nada se não for para lhe dar um qualquer uso. Além de mais a questão da utilidade é assunto já discutido ao mais alto nível intelectual, dr. juiz, não duvide por isso da cientificidade das minhas afirmações.

Julgo que talvez tenha sido a primeira vez que utilizo dois pontos por aqui, é visível a minha necessidade de nova pontuação. Em seguida, querido Charlie, termino então a minha argumentação, que eu ando menina cansada e isso pesa, sabes a energia que é necessária para aliar o discurso à emoção. E se não chegar, recorremos. Remato então a questão:

- Sr juiz, tratemo-nos agora por tu que o assunto não é para formalismos. Segredo-te, para que ele não me ouça, que o Charlie é uma criança, todas as noites me pede uma luz de presença. Surge nos meus silêncios e infiltra-se no meu coração. E eu rendo-me, o que farias no meu lugar? Esta prova não é refutável. Mas eu garanto-lhe, sr. dr. juiz, que ela é verdadeira.