quinta-feira, 28 de maio de 2009

O teu pé esquerdo

Estou aqui! Não me vês?!

De que cor é o teu cabelo?

Castanho. Não me vês?! Aqui! Estou a acenar! Tenho a certeza que és tu, do outro lado da alameda.

E os teus olhos, de que cor são?

Castanhos. Não me vês?! João! Como é possível?!

E o nariz, como é o teu nariz?

Não sei definir narizes, Ana, muito menos o meu. Vou levantar agora o meu pé esquerdo. Viste? Caramba Raul, sou eu!

Não vejo. Podes ser mais explícita na tua identificação? Já pensaste que todos estes problemas podem ser fruto disso? Como podes esperar que saiba quem és?

Mas…mas nós combinámos, António. Combinámos que quando nos encontrássemos saberíamos. Desconfio agora que não sejas tu, não é possível afirmares algo com tanta veemência, e de repente mudares de ideias quanto ao meu reconhecimento. Se há coisa que parece ser importante é a confiança do reconhecimento.

Bom Maria, passou-se tempo, e eu li entretanto tantos livros. Foram muitas personagens, e de todas fui pondo um bocadinho em ti. E depois, o conjunto dos sítios não deu a alameda da universidade, foi no jardim do príncipe real que te construí em mim.

A alameda tem relva. Compreende, nem tudo poderá corresponder à história. Há que ser flexível. E sou eu, querido. Não poderia ser outra pessoa a levantar assim o pé esquerdo, e a gritar João! com esta transparência na voz. E a sair do autocarro num repente apenas porque te vi. Como podes duvidar? Tu, que sempre me disseste que esta impulsividade era tão característica. Mas está este trânsito descomunal, que me impõe esta dificuldade e não me deixa ver-te ao perto. Parece que esta também constitui uma das grandes formas narrativas, uma perturbação repentina, a personagem lutadora que vai ultrapassando os vários obstáculos, até que tudo acaba em bem. Na verdade a estrutura dos filmes anda a mudar. Como não havia a nossa de mudar também, mais cedo ou mais tarde?

Bem sabes que demorará. É um processo, meu bem. Não mudamos de filme de um momento para o outro. Ou quem sabe de um momento para o outro, mas depois de vários bocadinhos de nós terem começado a gritar do outro lado da alameda. Coitados dos nossos bocadinhos, roucos que eles estão, e eu aqui a escrever a tese e a mandá-los calar, porque só consigo trabalhar em silêncio. Talvez por isso ande a sentir-me tão culpada. Vão-me dizendo subliminarmente que sentem a minha falta ali no sofá, e que a sra. dos tempos livres passa mais tempo com eles do que eu. Qualquer dia jantam lá, dizem-me. Estão tão crescidos, Maria, havias de vê-los, são umas crianças adultas. É um paradoxo isto de só se ouvir as crianças quando elas já são adultas. A história é outra, e no entanto terá de ser a mesma. És tu pois, do outro lado da alameda. A mesma. Minha menina. Desculpa. A história da alameda. É que as árvores do jardim do príncipe real. Menina. O teu pé esquerdo. Menina minha. As árvores do príncipe. Desculpa. O jardim das árvores do outro lado do real. Quase não me deixaram ver o teu pé esquerdo a levantar-se.

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