sábado, 11 de dezembro de 2010

Infinitos nós

Amor, minha alegria. Este fugaz mas intenso texto tem como principal propósito preencher esta folha de risos nossos. Lembro-me então de apagar-nos a memória, que sabemos que ela é responsável por todos os princípios e por todos os fins. Viver apenas da memória é como cantar a olhar para a partitura, algo de essencial se perde. A história divide-nos, espartilha-nos, estraçalha-nos de novo em pedaços, a nós que somos inteiros no silêncio. Deste modo, ao longo deste texto e no sentido de atingir o objectivo proposto, tento eliminar todas as nossas palavras, roubando-te antes o silêncio branco branco que utilizo para preencher o vazio da folha e onde em seguida posso colocar o nosso riso.

Não esqueço.

Alto! Não vos insurjais, não existem personagens neste texto, que o tempo presente, o único aqui utilizado (salvo um ou outro gerúndio, mas que surge com uma função adverbial), não admite semelhantes divisões. Não esta ou aquela ou passado ou futuro ou sonho ou realidade. Quero tudo, que talvez este seja o último texto deste longo ano que começa em Janeiro e termina em Dezembro. Perco-me a ouvir o som da chuva a bater na calçada (ou será ela mesma que ouço, a chuva?), tic tic tic, e constato que compete com a verdade do riso. De modo que te peço que enquanto me lês imagines esta folha também cheia da verdade da chuva ou do seu som a bater na calçada. Hoje levanto-me, meu amor, tomo o pequeno-almoço, e venho trabalhar. Os dias são tão reais, têm princípios e fins como os objectos que nos rodeiam, como o meu piano ou esta folha onde escrevo, ou mesmo como os nossos corpos. Escrevo-te aqui da prisão, onde todos os dias me tentam ajudar a ser livre, uma tarefa possível mas difícil tendo em conta a grossura das paredes em volta, de tal maneira que escorre água de tanta humidade e do sol que por vezes não entra. Estas paredes são tão realmente grossas, que ilusoriamente nos dividem e nos espartilham e nos estraçalham e ainda nos agrilhoam, que o que é demasiado rígido desune, e nos fazem por vezes esquecer aquilo da verdade, amor. Escrevo-te então, que enquanto assim me expresso não existem dúvidas, apenas constatações que não respondem a nenhuma pergunta. Tic tic tic, como a chuva na calçada, ou como o riso com que ao longo desta história espero que enchamos, não a memória, mas o silêncio da mais completa biblioteca. Estas cinco últimas palavras são tuas, nota que é natural que enquanto caminhamos para o silêncio saltem pedaços de memória. E enfim, trata-se de um texto, além de ser um verdadeiro sonho tenho de imprimir-lhe um pouco de realismo, enchendo-o de palavras e de princípios e de fins e de memórias, afinal tantas, provando-me assim que é possível ter a finitude dos corpos e o silêncio infinito. Termino agora este texto, julgando ter-nos já dado palavras suficientes para podermos apagar a história e enchê-la de silêncio, e em seguida então do nosso riso (e talvez do som que eu ouço e que tu ouves da chuva a bater na calçada?). Que afinal é assim que realmente tudo termina, e que verdadeiramente tudo começa.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Notícia

Princesa, escondei-vos! Ouço os seus cavalos. Estou seguro que vêm em busca das palavras.

Não os temo. Ninguém tem de saber que as roubei, nem que as guardei secretamente nos caixotes verdes que tenho na varanda. Ninguém tem de saber que todas as minhas palavras eram vossas, que durante toda a minha vida não fiz senão plagiar-vos. Agora que sabeis que existo, e até onde moro, receei que désseis conta que era eu que vos roubava durante todo este tempo, e assim justifico o longo mês de silêncio. Perdoai-me, mas foi muito tempo à espera do meu outro amor, tinha de entreter-me a juntar as vossas palavras em novas frases e novos parágrafos. Já a tratar-te por tu, desconstruí-te, desmantelei-te, desfiz-te em sílabas e por vezes mesmo em fonemas. Passei então longo tempo a reenlaçar todos os elementos, tentando a todo o custo fazer uma nova história, ou quem sabe uma nova canção, que é por vezes mais fácil dizer tudo isto a cantar.

Rogo-vos, escondei os vossos passos, fugi para sul, onde sabeis poder encontrar o silêncio do mar.

E então, deliciada com os novos sons das novas histórias que entretanto ia criando enquanto te esperava, sorria nua pela casa a despir-me e a vestir-me com as tuas frases que eram já minhas, que tudo o que nos dá trabalho parece-nos nosso por direito adquirido.

Julgo que apenas lá podereis ter toda a calma que mereceis, princesa.

Não quero ter calma alguma, confesso a minha ansiedade por chegar ao fim deste texto. E devagar, que apesar de ser ansiosa sou lenta, fui vestindo as minhas várias personagens animadas, imaginando-lhes velhos nomes. Cavaleiros aprumados, meninas blondinas, Peters voadores, ofereci-lhes os vossos substantivos e adjectivos e tantos advérbios de modo, tantos tantos que me perco, meu bem. De tal forma tudo isto é real e não apenas um sonho (juro-vos!) que a determinado momento eu soube que as palavras já não seriam tuas (e nota como para espelhar este processo te plagio descaradamente no início do texto, o que não acontece já neste final).

Princesa, apressai-vos na resolução da história, estamos há demasiado tempo no clímax, dói-me o peito de aflição por vós.

E apercebi-me então que elas também não seriam minhas, não poderei devolver-tas, perdoa-me. Que neste processo de dar voz às personagens já não sei mais quem é de quem, e numa apreciação justa direi que sou eu que lhes pertenço, às palavras. São já elas que me desconstroem, me desmantelam, me desfazem em sílabas e por vezes mesmo em fonemas, e eu já sem ar só de o escrever. Cavaleiro, agora que sabeis que existo e que as vossas palavras se encontram nas minhas caixas verdes que estão na varanda, peço-vos, não nos afastais roubando-me delas. Finjamos antes, proponho, que não sabemos que ambos lhes pertencemos, e que não somos nós que nos amamos através das palavras, mas antes elas que vivem através de nós. Shhhhhhh. Ninguém tem de saber.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Só um texto

E agora tu morrias.

Não! Como podes pensar matar-me?

Calma, tudo isto é a fingir. É só um texto.

E há algo mais real do que um texto?!

Meu bem, vamos ser práticos, escusamos de tentar enganar o leitor. A ideia principal é a de que queremos matar-te a fingir para que possas viver a sério. E partilhando assim as nossas fortes e ousadas intenções, talvez o leitor se sinta compelido a ajudar-nos, que sabemos bem não existir melhor estratégia do que o voto de confiança para que haja uma participação activa. Pedimos assim, caro leitor, a sua máxima atenção, ainda que saiba de antemão, não apenas o final da história, mas também a forma geral da narrativa. Fomos então buscar espadas, punhais, espingardas e todo o tipo de ferramentas usualmente utilizadas para matar alguém. No entanto, para a morte ser a fingir, o processo tem de ser lento, meu bem, e talvez tenha sido por isso que a Tosca se enganou. E assim te explico todo o meu cuidado, desculpa a lentidão, mas prezo a tua existência real. A pressa é inimiga da perfeição, e a arte de fingir é tão difícil. Vê bem, meu velho, para poderes continuar vivo em mim não pode haver enganos, todos os fingimentos têm de ser levados com a maior seriedade. Não quero ver ninguém distraído, está uma vida em jogo. Digo-te, não suportaria constatar que morreste a sério passando a viver a fingir, não suportaria. Quando era criança tive de abater uma cadela e nesse dia, sabes o que fiz? Dei-lhe um salame de chocolate inteiro. Estou convencida de que isto não foi só para que ela tivesse um último momento de intenso prazer, mas também para dar-me tempo de matá-la. Enquanto ela devorava o doce lembro-me de observar as minhas lágrimas a cair e de pensar

Não me posso esquecer desta imagem

sabendo que me iria ser útil para ter a certeza profunda de que continuaria viva. No fundo servirá para isto a memória, para podermos morrer e renascer quantas vezes quisermos, com a segurança de que todas as mortes são a fingir, para que as vidas possam ser a sério. Temos de acautelar-nos, que nas cenas demasiado rápidas as imagens são por vezes tão confusas que a vida se pode confundir com a arte. Seria catastrófico que ao escrever a tua morte morresses de vez, sem me dares tempo de te perdoar teres morrido ou de ter já saudades tuas contigo ainda ao meu lado. Já alguma vez te aconteceu? Teres saudades de alguém que está ali contigo. E tudo isto que te disse ao longo destas linhas fui eu a fazer tempo, tentando encontrar a última imagem. De modo que meu bem, agora tu morrias. Mas antes viravas-te para mim e enquanto eu guardava essa imagem na memória tu dizias-me, baixinho:


- Não te preocupes, nina. É só um texto.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

Justiça na floresta

Peço-lhe que nos explique o que fazia na floresta nesse dia.

Brincava, sr. juiz.

(Revolta no tribunal)

Mentira! Sr. juiz, não acredite numa única palavra! Vimo-la com espadas, espadas a sério, não de brincar!

Ordem! Tem testemunhas?

Apenas as outras personagens. Talvez os duendes apareçam se os chamar.

Chamá-los-ei então. Duendes!

(silêncio expectante no tribunal)

Desculpe sr juiz, mas as personagens dela não respondem a ordens, só a pedidos genuínos.

E como se faz isso?

Terá talvez de começar com uma afirmação interna que reflicta o seu querer e intenção, como esta

- quero que os duendes me ajudem a encontrar a verdade

Em seguida terá de colocar esta afirmação sob a forma de pergunta,

- duendes, podereis aparecer junto a este tribunal, como testemunhas da menina, para que se descubra a verdade e não menos que a verdade?

E esta é a maneira que a vida encontra de continuar a passar, através das nossas perguntas.

Louca! (insurge-se uma das personagens reais deste texto imaginado). Defende-se com ambiguidades poéticas. Exige-se justiça! Queremos factos, descrições neutras, que prove por a mais b que não feriu ninguém com as suas espadas! Que nos diga o que faz com elas nesse mundo encantado. Diz!

Diz! (gritam em uníssono)

Alto! Quem lhes deu permissão para interrogarem a ré?

Olhai para as suas vestes, é Morgana, a rainha! Para que foi ela desencantar uma personagem mitológica? Não bastavam os duendes para confundir o leitor?!

(Rebuliço no tribunal)

Diz-nos, rainha, a que mundo pertences? Quem é o teu criador?

Ooh, não vos sei responder, foi há séculos que nasci, as versões são muitas e o tempo faz por vezes confundir o criador com a obra. Confesso perante este tribunal que esta espada é minha, emprestei-a à menina. Condenai-me a mim se precisardes de um culpado nesta história.

Ooooooooooooooooh (novo uníssono. E novo silêncio)

Rainha, não vos culpeis, é minha a responsabilidade. Precisava de entregar algo a uma das personagens que terá sido cuidadosamente colocada do outro lado da montanha. Rezei então durante sete longos anos (foi o meu pai que me ensinou a rezar, mas a meu pedido, que eu gostava da ladainha), que é o mesmo que dizer que fui respondendo às perguntas que a floresta me fazia, distraindo-me dessa forma de todas as dificuldades, e mantendo-me a caminhar.

Para que queria ela que caminhasses?

Ora, talvez por saber que esse é o único objectivo. E talvez vos ajude a diminuir a ansiedade saber que tudo isto é apenas imaginação minha, caro personagem. Perguntou-me (a floresta!) tantas vezes o meu nome, incrível como se torna difícil responder a algo aparentemente automático quando estamos concentrados noutras tarefas. Experimenta por exemplo dizer o teu nome completo enquanto tocas piano. Atravessei rios e vales e tempestades e nos piores momentos

- Como te chamas?

E com isto cheguei, e entre lágrimas desci do meu cavalo e com a espada rasguei as palavras que afinal eram ruído e disse-lhe (ou gritei?), já com toda a floresta como plateia: Menina! Eu sou a Menina!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Referenciais inerciais

O mês tem sido bom. Levanto-me cedo para ir trabalhar. Pelo caminho, ouço música e ponho o volume no 15, e conduzo bem depressa. Esta é uma das vantagens, quando o mundo parece parar, temos a ilusão de finalmente podermos andar. Nota que até a velocidade é relativa, não sendo possível distinguir dois referenciais inerciais. Silêncio agora, concentração, ouço-os a chegar.

Posso mandar entrar, Dra?

João. Há momentos em que tenho a certeza que andaremos à mesma velocidade, ou que estamos os dois parados.

Manuel, Dra, o meu nome é Manuel.

Porque não nos distingo, e estou segura de que nem um observador exterior a este sistema o poderia fazer.

A Dra. o diz e é verdade, sem desconsiderá-la mas não se distingue mesmo, cá dentro ou lá fora vai dar tudo ao mesmo. Apesar do exterior me assustar ainda, de certa forma estes muros deram-me algo que nunca obtive antes.

Revelo-te aqui, na presença de todos e de ninguém (e esse é o melhor de dois mundos, quando o paradoxo se desfaz), que ontem me passaste os teus dedos pela minha cara, e eu soube que eram teus porque eu tenho um detector das tuas impressões digitais. Ele apita incessantemente nesse momento, imprimindo-me o som em todas as células do meu corpo, reactivando a ligação entre esse estranho neurotransmissor e os seus receptores. Tudo isto na esperança de que não me esqueça de que existes também na matéria.

E eu não me esqueço Dra., não esqueço, há instantes em que a ficha nos cai e parece que toda a nossa vida nos passa diante dos olhos. Aqueles momentos em que sabemos que temos de ser nós.

Eu permaneço em silêncio nos segundos subsequentes, antes de começar de novo a interpretar a minha imagem agora reflectida no espelho da casa de banho desta casa deste bairro desta cidade deste país deste planeta deste mundo. Porque apenas no silêncio posso realmente tocar-te, ainda que com as minhas palavras.

Era como se não fosse eu, entende Dra? Olhei-me ao espelho e pensei: não sou o mesmo de antes. Talvez seja eu agora.

Retiro então o excesso de água, começando lentamente a acelerar, são 7.45 da manhã e apesar do vazio de Agosto há ainda uma distância a percorrer. 5km/hora até ao quarto, chatice ter de levar calças com este calor. 10km/hora enquanto constato que já quase não tenho café. 15Km/hora, todos os dias a cena da gata a esconder-se no exacto momento em que penso ir fechá-la. 20Km/hora e começo já a sentir saudades, que saudades João

Manuel. Acho que esse silêncio vem de Deus, Dra.

30 Km/hora e desço as escadas a correr e 50Km/hora a velocidade de comer três bolachas e 60Km/hora para rodar a chave e 90Km/hora é um absurdo na cidade assim mesmo sem vírgulas ou qualquer tipo de sinais. E os nossos referenciais são agora não inerciais, olho distraidamente pela janela e consigo já avistar-te lá fora, se não fosse o volume no 15 poderia até dizer-lhes a que velocidade estás. Que dizia, Manuel? Sobre o silêncio.

João, Dra. Manuel era o anterior, o meu companheiro de cela.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

De que os meus cabelos eram mesmo tranças imensas a ondular no mar

Tocam os sinos, são 12h. Por favor apressai-vos, não quero atrasar-vos por minha causa.

O comboio espera por mim, estamos no reino do sonho. Falta-nos um final.

Cavaleiro. Talvez o final nos falte por falhar-nos também o princípio, reparai como quase sempre a coda se reporta à exposição inicial, ou mesmo ao título. Desculpai-me, é de dia, e é sempre tão mais difícil encontrar estrutura para os meus textos, o sol teima em iluminar outros assuntos. Mas cavaleiro, tenho trabalhado no assunto, fui uma série de vezes ao mar e perguntei-lhe, com toda a reverência:

- Meu mar, podereis conceder-me (achei que a palavra era mais reverencial do que simplesmente “dar-me”) o princípio da história?

Respondeu-vos?

O mar é como a vida, responde-nos com o movimento das suas ondas. Vem e vai e vem e vai-nos (conseguireis ouvi-lo?) despojando dos acessórios, tira-nos os brincos, as pulseiras, rasga-nos a roupa (toda toda), sendo estes os acessórios exteriores, e arranca-nos sem piedade os pensamentos, e por fim as emoções. Eu fico a boiar com as minhas tranças onduladas que se espalham mar dentro e que nos ligam, a mim e a ele, ao mar. Sabeis os cabelos das deusas gregas? É assim que os imagino, e este é um segredo que vos conto: por vezes recolho-me, ali naquele canto, e permito-me ter longos cabelos ondulados cheios de tranças, e ouço o sino que ressalta na quietude das cigarras. Este tempo faz-me sempre, sempre, lembrar o verão em casa dos meus avós, em que me perdia a ler os livros da patrícia e a jogar ao 7 imaginando quem seria os participantes, uns vencedores outros perdedores, que interessa ganhar ou perder? Interessa viver. Sabia que aquele silêncio ninguém mo iria tirar durante os 3 meses de férias, 2160 horas de um maravilhoso silêncio que me permitia ouvir os passos das pessoas a andar na rua e também o sino dessa terra distante a bater as 12h, cavaleiro, que te atrasas. Mas adiante, que faltam apenas 45 minutos para ir trabalhar, não é só o tempo subjectivo que encurta à medida que crescemos. O mar está cheio de segredos, estão presos nas conchas e nas pedras, e talvez seja por isso que gostamos tanto da natureza. Ela guarda todo o conhecimento sobre todos os homens de todos os tempos. No fundo no fundo talvez seja meu desejo que descubras todos os meus segredos, na esperança de que eles nos unam para sempre, apesar de eu ter aprendido com a minha gata (que curiosamente veio agora deitar-se ao meu colo), que gosto tanto dela sem que no entanto algum dia possa vir a conhecer verdadeiramente o seu mundo.

E que vos disse, o mar? O comboio parte sem mim, estamos já na vida real.

Segredou-me então, através do búzio que coloquei no ouvido enquanto boiava:

- dá um fim, ao texto. O fim dar-te-á o início.

E as ondas a ir e a vir, vchhhhhhhhhhhhh, e as tranças e as pulseiras e…

…e eu entendi então, cavaleiro meu, como isso dos inícios e dos fins nada tem que ver com amor, meros acessórios humanos parecidos com o anel de que te falei há uns textos atrás. E são 12h, mas vendo bem é já 1h e 17 minutos de um novo dia, o meu imediatismo fez-me crer que o processo seria bem mais rápido. O mar eliminou todos os tempos e todas as horas e todos os minutos, e por um instante não mensurável revelou-me em avalanche todos os segredos do universo e deu-me a certeza. De que os meus cabelos eram mesmo tranças imensas a ondular no mar. E de que esse teria sido o início, e este seria o fim.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Um mar de cerejas

Rafa. Levei horas, talvez dias, talvez mesmo anos a escrever. É domingo, dia de visitas aqui. Veio cá a Leo, trouxe-me cerejas, um luxo que achou que merecia pelo bom comportamento. Sabes bem que estes dias são complicados, a junção dos dois mundos é tão difícil. Às três horas ouve-se o megafone (conto-vos porque sei da curiosidade humana pelo submundo dos presos):

Número 1061, visita.

Há muito barulho aqui, Rafa, muitos gritos e também as chaves nos ferrolhos. Percorro o corredor tentando lembrar-me de mim aí fora, não só para corresponder às expectativas da Leo, mas também para viver um pouco o sonho.

Número 1061, chamado à terra.

É verão Rafa, sê um pouco condescendente com o meu sonho, que não é senão uma forma de protecção. Quando o interior e o exterior são demasiado diferentes pode descambar para a loucura. E nota, a tua realidade é o meu sonho, os dois encontram-se na sala de visitas.

Sr. guarda, pode deixar-nos a sós? Gostava de eliminar os elementos que fazem parte de cada um dos mundos. Só assim eles se poderão juntar no que lhes é essencial.

O sr. ribeiro deixou-nos a sós, é uma crença irrealista a que existe sobre a má vontade dos guardas. Permanecemos então em silêncio esses dois minutos, dois porque é par e é redondo. A imagem é intensa mas harmoniosa, Rafa, sem qualquer tensão. Há imagens que nos ficam guardadas na memória, no meio de todo aquele drama lembro-me de pensar:

Quero utilizar esta imagem num texto.

Fotografei-nos então em silêncio, julgo que nem se terá ouvido o barulho da máquina a disparar. Mas o rádio tocava, Rafa,

Sentiiiiiiiiir, que es un soplo la vida. Que veinte años no es nada, febril la mirada, entra por essa porta agora, e diga que me adora, Here she comes again, Não há leis para te prender, aconteça o que acontecer (recomenda-se leitura cantarolada)

Perdoa-me, é que quero pormenorizar o contexto, que é ele que nos conduz e nos guia e nos estrutura. Fixo-me, fixo-a, fixo-nos, condensando assim numa pedra de gelo toda aquele mar que envolvia a realidade da Leo, ou antes o meu sonho, como preferirem.

Não chores, querido Peter, um dia destes voltas a casa.

É linda a minha Leo, inundou-me a sala de visitas de cerejas e de verão. E o megafone:

5 minutos para o final das visitas.

O sr. ribeiro, o guarda simpático de há pouco:

Tenho de te levar. Mas há mais domingos, rapaz. Dás-me uma cereja?

Claro, sr. guarda.

Que ele coitado também passa cá muitas horas, profissão dura esta, mais ainda no Verão.

Escrevo-te já da cela, mas digo-te que o mais difícil é aquele corredor, Rafa. É tanto o barulho que eu chego a duvidar que aqueles passos sejam meus, e que sejam minhas as mãos que sentem as cerejas que guardei nos bolsos. Percorro então o corredor a cantar, que diz o povo ser a melhor forma de espantar os males

Volveeeeeer, con la frente marchita…

Voltei, Rafa. Podes avisar a Leo? E por favor, agradece-lhe as cerejas.

quinta-feira, 10 de junho de 2010


Que é para as respostas não ficarem afogadas em palavras. Mas volto breve breve.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Acção

Querido Peter Pan. Desculpa a demora, mas por vezes tudo é tão rápido, que o processo de chegar até ti se torna mais lento. O que me vale é que é da tua natureza ser criança.

Estranho-te. Para que me falas?

Tentarei não fazer rodeios, e ir directa ao centro, acertando-te com a espada no coração, e desta forma libertando tudo quanto dentro dele possa estar contido. Trouxe-te também uma espada para ti, e através dela poderás expressar-te e proteger-te, são dois coelhos numa só cajadada. Há-de notar o leitor que esta minha personagem, que afinal é a primeira de todas, é um tanto misteriosa, apesar da sua constante presença vemo-la intervir pouco. Perguntei-me então qual a razão de tal incongruência, e cheguei à aterradora conclusão de que talvez tenha criado uma personagem cujo conteúdo e necessidades emocionais desconhecia, apesar da sua posição fundamental no jogo corrente.

(Silêncio do Peter, surgindo nos seus olhos as primeiras lágrimas. O seu corpo move-se lentamente em direcção à espada).

Traíste-me. E por que razão nunca me perguntaste o que sentia? Para que me criaste, se nunca quiseste saber quem era?

Talvez num desejo egoísta de crescer, presa numa crença de que, se mudasses, algo na nossa relação terminaria. Validando-te poderia perder-te, que não há melhor estratégia para ajudar alguém a mudar que dizer-lhe que está bem assim. Andaria louca em busca de uma nova personagem principal, percorreria todos os técnicos, até os da imagem e do som

- por favor, arranjem-me um novo protagonista

não tendo entendido eu, meu Pan, que apenas mudando poderias continuar a ser tu. Estas são considerações teóricas bastante difíceis de aprender, quanto mais de apreender. Nota no entanto como sempre soube da tua especial importância, querido Peter, (marejar de lágrimas por parte do Peter, o que nos dá indicação de que este conteúdo será um bom marcador para o processo de mudança. O que é o mesmo que dizer ao leitor para prestar atenção a este trecho), caso contrário nada disto teria acontecido. Não poderia dizer-to explicitamente, escancararia dessa forma a minha vulnerabilidade. Passei-te então duas mensagens fundamentalmente diferentes, dei-te importância no processo mas retirei-ta do conteúdo, e duas mensagens numa só pessoa dá um triângulo perverso, a ambiguidade é o pior maltrato, sabe disto qualquer terapeuta que se preze.

(Peter levanta-se, lentamente, colocando as pernas em posição de luta, apesar das lágrimas ainda presentes)

E aqui entre nós, vê tu bem a ironia, foi para escrever que te ocultei e por escrever que te descobri, e vem-nos de novo a ideia de como a mudança e a manutenção não existem uma sem a outra. Aparecem-me neste instante à mente algumas considerações de carácter menos teórico sobre este assunto, como esta:

- envenenou-se com o seu próprio veneno

mas ouve, Peter, desconfio que algo mais que isto se passou, caso contrário bastaria dizer-te:

- liberto-te desta dívida. Deixas neste momento de ser uma das minhas personagens, poderás antes ser quem queres

com uma voz clara mas seca, sem conteúdo emocional. Mas ao longo destes anos algo em mim foi invadindo o meu corpo de mansinho mansinho, assim como a doçura das folhas ali ao fundo a oscilar com o vento.

(A luta do Peter começou entretanto, há já algumas linhas. A personagem está agora demasiado concentrada na activação límbica e na correspondente tendência de acção de luta, motivo pelo qual não fala).

Perdoa-me, meu bem. Ofereci-te então essa espada com que te libertas e expressas e proteges, (afinal são três coelhos e não dois), conjugando-te assim a beleza da luta e a doçura das folhas. De tal modo que agora quando te olho sei que já não és um boneco, de certeza que não és.

Como sabes?

Nenhum boneco vive assim. Em mim.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Futuro-me

Amor? Gostaria de começar este texto com uma afirmação, que bem sabes como elas são necessárias para estruturar o leitor. Comecei então a incansável busca, e nota como uma questão pode ser colocada sem no entanto haver margem para dúvidas:

- Boa tarde, Sr. Quanto custa uma afirmação?

Sabes que hoje, no metro, pude por um breve momento sentir como se fosse a primeira vez que me transportassem? Desculpa, por vezes a vida real infiltra-se na ficção, diz-me ela (a vida real) que não aguenta a rotina, insurgindo-se num acto de rebeldia adolescente, ou mesmo infanto-juvenil, como os livros que líamos quando tínhamos 13 anos.

Podes voltar à história principal? Para que te sigam.

Percorri então um mundo e o outro à procura de uma afirmação parecida com as ondas do mar, daquelas que nos transportam (sublinho a ligação com o transporte do metro) até à beirinha, e nos moem e nos reviram e nos esfrangalham e nos enchem de areia, estranho como nos sentimos lavados com tanta areia presa no fato de banho. Acho que é pelo caminho, enquanto fazem carreirinha, que elas vão colocando as perguntas (são duas personagens, que a dúvida implica a divisão), e que estas vão sendo eliminadas pelo movimento das ondas. O movimento das ondas, girls, que bom que é. E surgiu-me de repente a ideia, amor

mentirosa, a ideia estava já presente no início do texto, ou quem sabe no início de tudo

concentra-te um instante comigo, a ideia de que se todas as afirmações pressupõem uma pergunta, talvez tantos anos de procura sejam antes consequência de uma qualquer afirmação futura, e não a sua causa. O que quer dizer que o nosso passado (o meu, o teu, o nosso, que um mais um igual a pelo menos três) dependerá então da forma que dermos ao futuro, e se virmos bem compreendem-se todas as perguntas que te faço, inclusivamente a primeira de todas, lá em cima. Sabendo disto tentarei eliminá-la até terminar o texto, que faltam ainda cerca de 14 futuras linhas, muito passado pode ainda ser mudado.

- a Dra pergunta se será um grande incómodo para si alterar a consulta para 5ª feira de manhã.

A vida real adolescente a insurgir-se de novo, não contei com esta imprevisibilidade. Faltam 131 palavras para o final.

- fica combinado. Poderá transmitir à Dra., no entanto, que o nosso trabalho passará a ser o de rever o futuro para alterar o passado?

E desconfio, meu bem, que esta ideia que te apresentei começa lentamente a instalar-se em mim. Porque ao longo destas linhas de hoje começo a já não me lembrar da tristeza de ontem, talvez neste momento ela até nem nunca tenha existido. Ou então é do cansaço da hora, que este texto foi difícil. Faço então uma última tentativa de alteração da forma inicial, terminando com uma questão, na esperança de que no momento em que a escreva a primeira pergunta de todas se apague por si. Se isso não acontecer, bro, desculpa. É porque o leitor considera o título a primeira afirmação de todas. Está bem?

segunda-feira, 10 de maio de 2010

The One

Menina. Tanto há para te dizer há já anos, que por vezes a emoção primordial vai sendo substituída, talvez por um conjunto de outras emoções menos avassaladoras. No entanto, há momentos em que, por razões desconhecidas, algo em nós quer porque quer voltar a um simples fim, que é o mesmo que chegar a um início. Quando vou ao médico acontece-me algo parecido, depois das duas horas de espera habituais toda a minha elaboração se desvanece:

- então de que se queixa?

- dói-me aqui.

e as seguintes intervenções são também respostas curtas neste tom monocórdico (sei que me ouves, meu bem). Todas as associações param então, e eu pergunto-me, neste instante, se a isso se deverá o facto de a minha ansiedade repentinamente se evaporar e surgir uma certa tranquilidade, mesmo com aquela dor que me atingiu o músculo e me despertou às 3 e 45 da manhã. Ou de outra forma te digo, assim desajeitadamente, que talvez tantas palavras e tantas frases e tantos parágrafos recheados de pormenores ansiosos que antes te dei assumissem uma função de auto-protecção. Que ela inventa emoções tão intensas que até nós temos de fingir que somos outros, menina minha, o que tendo em conta a nossa condição de personagens animadas dá um duplo fingimento. Triplo, na passagem da real vida animada para o papel.

Amanhã há escola. Que me queres dizer?

Escrevo-te desta vez com um propósito contrário, que será esta necessidade de finalmente nos condensar aos dois num qualquer centro nevrálgico. Se pudesse dava-te todo o meu amor numa palavra, apenas numa. Ficarias decerto convencida, dada a dificuldade da tarefa. Não haveria assim espaço nem tempo para ambiguidades, apesar de todas as nossas diferenças. Mas foi tanto tempo, girl, e eles têm a mania de nos ir enchendo a vida de palavras na esperança ingénua de um maior controlo, não sabendo que em vez disso causam simplesmente maior incerteza. Foi tanto tempo que lhe peço:

- por favor, podes levar-me ao mar?

- para que queres ir ao mar? tens é de ir à escola.

Por vezes diz-me isto a rir-se, com brandura e achando alguma graça ao que julga serem meus desejos (talvez a delicadeza do pedido não transparecesse a necessidade imperativa?), mas arrastando-me entretanto para o autocarro, e a seguir para o metro

- trocas no campo grande, onde há correspondência entre a linha amarela e a verde

-mas é que no mar…

É hora de ponta e o ambiente está confuso, menina, há muita gente a falar ao telemóvel, imagina que já vi gente com um em cada orelha. Não consigo perceber para onde vai toda aquela informação sob a forma de ondas electromagnéticas que só podem cruzar-se, são muitos milhões de pessoas à procura das palavras certas. Será impossível que o que é simples não se complexifique, é muita entropia electromagnética. Para onde vai tanta informação?! E nisto perco-me

- andas três estações, tens de ter cuidado na direcção, senão vais para trás, para odivelas

- mas é que no mar eu poderei…

Linha amarela. Depois verde. Corro, girl, e encho as minhas mãos de suor, na esperança de que este não me permita sentir esta tristeza por não ter ido num instante ao mar, que tu sabes que é aquele sítio onde todos os tempos se juntam. E onde eu sei que encontraria uma só palavra para te dar.

domingo, 2 de maio de 2010

Overloading

Alex. Escrevo com dificuldade, porque os horários são rígidos, chega aquela hora e ficamos sem luz. A vida é por vezes difícil por aqui, brother. Durante o dia a luz distrai-me, e há também as actividades. Enfim, acordamos e dizem-nos quem somos, o que é já um descanso. Nesta ala somos quase sempre Peter pans, brother, porque somos mais novos. No dia em que me mudarem para a H ficarei perdido, mas não vale a pena antecipar os acontecimentos. É curioso, imagina Peter pans presos, parece um contra-senso dado o facto do Peter voar, os humanos são peritos na criação destes paradoxos. Bro, hoje houve aula de capoeira na A, foi um tanto libertador, sobretudo porque o formador nos disse que se trata de uma dança-luta desenvolvida pelos escravos. Interessante, nota como as artes marciais têm vindo à baila (!) (exclamação inserida no meio do texto para indicar a introdução involuntária da expressão “vir à baila” após a ideia da dança, mostrando-nos um pouco do funcionamento cerebral) nos últimos tempos. E Alex, esqueci-me de começar a carta com os acontecimentos mais antigos, mas sabes como podemos começar numa determinada data e depois o processamento levar-nos mais atrás, bem lá atrás. Outro dia o Tito, sabes o meu companheiro de cela? Virou-se para mim e disse-me:

- Queres um cigarro?

E deu-me. Fumámos em silêncio, e digo-te Alex, aqueles 5 minutos foram os mais importantes dos últimos meses. Não desfazendo a tua visita, que os laços familiares serão sempre importantes, e a relação entre irmãos é a que normalmente dura mais tempo. Mas bro, com a sua fala o Tito introduziu três coisas importantes: o cigarro, que aqui dentro equivale a outros grandes prazeres no teu mundo; a iniciativa da proposta, rara, aqui dentro ou aí fora; a partilha de uns minutos de silêncio com o Tito, sem ser aquele silêncio constrangedor de quando te permitem vir comigo até ao jardim. Devo maçar-te com esta conversa do Tito, desculpa. Quando o tempo é muito para o espaço que o contém, a cabeça começa nisto outra vez, num looping, é um overload, bro. É tanta a informação que ela sabe que tem de sair por algum lado e eu rezo todos os dias que saia nos 5 minutos que nos dão de banho, porque aqui a imagem é ainda muito estereotipada, julgar-me-iam fraca. Como se a naifa que trago comigo sempre pronta não pudesse coexistir com lágrimas. Não os condeno, que com tanta condenação não poderiam mudar de vida nunca, nem os espíritos mais evoluídos. Overloading é também uma táctica de xadrez meu bro, em que a uma peça de defesa é dada uma nova tarefa que não pode completar-se sem que seja abandonada a tarefa original. São tantas tarefas e funções e peças e personagens e tácticas e estratégias, e estas últimas são duas coisas bem diferentes. Sabes o que são paradoxos, irmão? São altamente prejudiciais para o cérebro, dás uma informação para um dos lados e a oposta para o outro. É claro que poderás também considerá-los um desafio (palavra quanto a mim tão sobreutilizada no meio empresarial) permitindo-te desenvolver mais o corpo caloso, aquele que liga os dois hemisférios, e estruturas de ligação são uma mais valia neste mundo das relações. Vou terminar, que é quase de manhã e há as actividades, Alex, desculpa. Gosto tanto de te escrever, que se pudesse passava o resto da vida a fazê-lo, só para sentir menos uma condenação. Que é o mesmo que dizer o teu amor, quem não julga só poderá amar, calculo que não tenha alternativa. Troquei há pouco o género de propósito, que assim permito-me ser sem riscos de qualquer ordem. Além disso, julgo que terás mudado de morada, as cartas têm vindo devolvidas, o que faz com que eu seja simultaneamente o emissor e o receptor. E digo-te, esse tem sido o maior desafio, percebo a tua mudança de casa. Juro que percebo (tento convencê-lo, mais ainda agora, que chego à conclusão que ele sou eu). Meu bem. Meu bro.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Aikido

Alto! Parai! Avisto alguém ao longe.

Cavaleiro, tenho algo para entregar-vos. Peço-vos paciência, pois esta linguagem é nova para mim. Estou habituada a viver neste outro século, em que a lentidão é camuflada pela rapidez tecnológica. E cavaleiro, sabeis bem que viajar para o futuro através do passado é uma ideia peregrina. Pelo menos quando a expomos assim, sem antes apresentarmos as premissas e o tipo de raciocínio efectuado que nos permitem averiguar sobre a sua validade. Retirarei as minhas botas enquanto vos falo, para me assegurar de que mantenho os pés bem assentes na terra. Manterei este anel que me haveis oferecido há já anos, esperando que me ajude a ligar os dois planos, a ficção e a realidade. Gostava que os leitores pudessem aceder a esta imagem, esta aqui, que eu calculo que se uma imagem for guardada por muitas pessoas ela permanecerá mais vívida em mim, é o princípio sistémico sobre o efeito do todo no indivíduo. Sei bem, cavaleiro andante, que nenhuma imagem, nenhum texto, nenhum símbolo poderá condensar-me a vida, porque ela teima em passar, assobiando. Mas meu bem, apenas quando as imagens se tornam nítidas eu posso permitir que elas adquiram a sua liberdade, imaginai imagens foscas por aí a pairar, seria inaceitável, incompreensível. Perdoai-me, disperso-me. Dizia que seriam necessárias imagens de antes para que pudéssemos viajar no futuro, teremos de ir atrás para podermos ir à frente, e vendo bem tudo isto não será tão peregrino assim.

Porque me observais tão atentamente?

Permiti-me que continue o meu discurso, segura de que terminarei respondendo às vossas questões, mesmo sem querer. Numa lógica linear, o movimento seria simples e directo, consistindo num afastamento, como quem luta contra um adversário e lhe espeta a espada assim, com este movimento seco (imaginai o movimento brusco acompanhado de uma cara de repúdio). No entanto, sabeis como em seguida carregamos o fardo dessa brusquidão, insistindo em repetir o movimento vezes sem conta, numa busca incessante pelo dia em que, cremos, algo para sempre se modificou. No entanto, pensemos os dois em conjunto, a libertação exige a pertença, quem inventou isto não estava para brincadeiras simplistas. Isto para explicar-lhe(s) esta procura incessante pelas partes de mim que andam por aí espalhadas pelo mundo, um braço aqui, uma perna acolá. Entende, querido, terei antes de juntar todos os teus bocadinhos, o que é o mesmo que juntar todos os meus bocadinhos (posso aqui dar-me a estes luxos de não fazer distinções), e trazê-los comigo assim, neste movimento contínuo, como no aikido (imaginai um movimento lento, harmonioso). Observo por isso atentamente a vossa sobrancelha, que curiosamente forma um quadro conhecido na sua relação com o meu olho, na esperança de que esta imagem nítida fique para sempre guardada. Em troca desta imagem ofereço-lhe uma das minhas tranças. Por favor cuide bem dela, é uma trança mágica. E assim nessa união poderemos, com toda a segurança, ser livres.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Charlie?

Charlie…

Querida.

Compraste-me bolachas? Charlie, queria dizer-te, antes que o momento passasse. Por vezes surge uma certeza que permite a felicidade na dúvida. Como se todas as perguntas sobre todas as espécies de animais fossem abarcadas por um ponto. Pensando bem, um ponto talvez não seja a melhor forma de representar isto que sinto, teremos de criar um qualquer outro sinal de pontuação.

Não tem conteúdo visível isso que sentes. Como o silêncio de que precisas para saber que o som existe. Talvez uma pausa? Trouxe também pão, havia pão quente.

Charlie querido, afirma por favor a tua existência, diz-me que és tu que aí estás. É que nota, a certeza surge sempre na tua ausência. Eu olho para ela e rio-me, que eu sei (nesse momento eu sei tudo) que isso é ela a ver se eu sobrevivo à dúvida sobre o facto de existires, mesmo quando te vejo (pausa para respirar. Silêncio, que talvez esta seja a ideia principal do texto). Rio-me assim disfarçadamente, como quem não quer a coisa, na esperança de que a dúvida não se instale e não me estrague o meu rico banho. Na tua ausência eu sei-te concentrado, um silêncio constituído por todas as séries harmónicas. Talvez por isso ela te tenha feito boneco neste texto, dando assim ideia aos leitores que existes não existindo. Porque essa é a verdade, e ela gosta de ser verdadeira nas suas descrições. Isto independentemente das coisas existirem sem quem as observe, ou das múltiplas interpretações que poderás dar às minhas palavras, isso serão outras histórias. Nesse momento de silêncio em que eu perco a noção do tempo, talvez por não se ouvir o tic tac do relógio, tu transformas-te numa real personagem, querido Charlie. E aqui a palavra “real” assume propositadamente dois significados, que no silêncio todas as minhas personagens são reis e rainhas. Vê tu que diz o dicionário que o significado da palavra “real” é oposto a “imaginário”. Dizem que terás de ser palpável para seres real, querido Charlie, que cruéis são para ti! Enfim, numa outra definição terás antes de ser genuíno, e isso eu posso garantir-lhes até mesmo em frente a um juiz. Digo-lhe:

- em primeiro lugar, sr. dr. juiz, todas as personagens aqui são genuínas, não lhe seria útil a ela criar personagens falsas. Este será já um argumento de peso, que o sr. dr. juiz bem sabe que no mundo de hoje ninguém cria nada se não for para lhe dar um qualquer uso. Além de mais a questão da utilidade é assunto já discutido ao mais alto nível intelectual, dr. juiz, não duvide por isso da cientificidade das minhas afirmações.

Julgo que talvez tenha sido a primeira vez que utilizo dois pontos por aqui, é visível a minha necessidade de nova pontuação. Em seguida, querido Charlie, termino então a minha argumentação, que eu ando menina cansada e isso pesa, sabes a energia que é necessária para aliar o discurso à emoção. E se não chegar, recorremos. Remato então a questão:

- Sr juiz, tratemo-nos agora por tu que o assunto não é para formalismos. Segredo-te, para que ele não me ouça, que o Charlie é uma criança, todas as noites me pede uma luz de presença. Surge nos meus silêncios e infiltra-se no meu coração. E eu rendo-me, o que farias no meu lugar? Esta prova não é refutável. Mas eu garanto-lhe, sr. dr. juiz, que ela é verdadeira.

segunda-feira, 29 de março de 2010

1´44



Chove. Vamos aproveitar para filmar uma das cenas à chuva, sim? Estão por exemplo os dois ali, naquele banco. A conversa inicia-se calma. Consegues sentir o texto?

Não entendo o contexto. Preciso de mais elementos para improvisar.

Ora, improvisas no vazio, e sempre sentes que és mais tu. Digo-te apenas que se trata de um reencontro, mas nenhum dos dois o sabe. Além disso preocupa-me mais ela, este é o seu exercício. Eva, estás preparada? Podemos começar? Já sabes, decides ao minuto e quarenta e quatro, que é quando a música começa a acelerar e começamos a ouvir a mão esquerda a fazer aqueles acordes que lhe imprimem tensão. Até lá tens de tentar entender o que se passa. Acção.

- Eva…

- Peço-te silêncio. Desculpa ocupar-te assim um minuto e quarenta e quatro de tamanha intensidade, mas precisei de saber quem eras afinal. Vou-te tocar ao de leve nas costas relaxadas, pode ser? Conhecemo-nos?

- Não tens tempo para ironias introdutórias, Eva. O teu filme já começou a passar, eles carregam no play e vão lendo ao mesmo tempo. Deixa-o correr, relaxa também tu essas costas, queres uma massagem? Porque estás tão tensa, Eva? Que se passa?

- O ponto, João, eles não me dão ponto no exercício final. E todas estas cenas, e a pressão da música, tudo é demasiado rápido, e eu disse já várias vezes por aqui que sou lenta. Não me obriguem a seguir em frente, que todos os beijos demoram a passar na tela, e isto é só um exercício, meu deus. E entretanto a chuva cai-nos em cima, e os meus cabelos ficam assim, em cachos. E eu sou eu mas não sou, que a imagem que tenho gravada é de outros ambientes onde a chuva não cai. Conhecemo-nos?

1 minuto!

- E vem-me um pensamento perturbador: se o meu corpo se juntar ao teu voltarei a ser porventura a de antes? Fará tudo isto parte deste mesmo filme que entretanto corre na tela? Afinal a minha pergunta é essa, desculpa a demora, as perguntas são o mais difícil de encontrar.

30 segundos. O filme continua a correr. Atenta à música, Eva, está atenta à mão esquerda.

- Atenta, atenta. A minha mão esquerda faz assim como eles, tantantantantantantantan, oito tans, e afinal esse culminar não é a decisão, esse primeiro culminar é a pergunta: poderei juntar este nosso beijo ao filme e não ser a de antes? Poderei manter o conteúdo (que um beijo será sempre um beijo) e mudar-me a forma? Neste nosso futuro beijo ambos temos cachos no cabelo, não introduzirão eles a diferença? A ansiedade será causada também pela possibilidade, que uma cena que integra os dois tempos, passado e presente, não se encontra todos os dias. Nota, ao minuto e cinquenta e seis ele sorri, e eu julgo que não será por ter encontrado ainda a resposta, mas sim a pergunta. E exactamente aos dois minutos e doze segundos, aí sim dá-se um novo culminar, com a entrada dos violinos lá mais para cima. Estavam a roubar-me 20 segundos, eu sabia que me apressavam. E se virem bem, apenas nesta altura as lágrimas são já bem notórias, e eu julgo que será porque de alguma forma a personagem principal integrou todos aqueles beijos, e são muitos, João, que ele viu muito cinema ao longo da vida. E aos dois minutos e vinte e nove, quando a estrutura da narrativa está já na síntese ou na coda, aí sim eu decido, cruzando como ele os braços por trás das costas como quem chega finalmente a casa e se refastela. Nesse momento tocas-me, ao de leve mas com intensidade, nas minhas costas já húmidas e ainda tensas, pode ser? E nesse momento eu digo-te: João…podemos repetir a cena, já com menos graus de liberdade e improviso? E tu respondes:

- Possivelmente.



sexta-feira, 19 de março de 2010

O gato humano

Meu bem, estive a pensar em tudo o que me disseste. Inclusivamente quando estava hoje na massagista, que me disse que todos estes músculos estavam fora do lugar, não havia eu de sentir-me estranha. Nem eu nem o outro, já dizia o poeta. Eu disse-lhe que tudo isso era natural e confessei-lhe, em tom de brincadeira para que não se assustasse com a dura realidade, que na verdade eu era um gato mascarado de humano.

E que te disse ela?

A sra. massagista permaneceu uns minutos em silêncio, mas sempre a mexer-me aqui na cervical, que foi uma forma de continuar a comunicação. Fez bem, poderia ter-se transformado num momento constrangedor para ambas. Eu insisti na fantasia, porque precisava urgentemente de uma qualquer explicação para esta estranheza: verdade! dra sra massagista, eu sou um gato à procura do seu corpo! E pumbas, mais uma pressão aqui, na C2. Inverti então a marcha, há que respeitar o tempo de transformação de cada um.

Devia fazer reeducação postural, e muito trabalho de corpo.

E eu suspeitei então que parte dela gostaria de explorar a cena do gato, que afinal não é todos os dias que presenciamos este tipo de loucura, nua e crua. É interessante meu bem, porque os gatos têm aquela flexibilidade que me permitiria seguir aquele sonho de que falávamos outro dia, na formação. E se de repente tudo isso fosse real? Afasto rapidamente esse pensamento, não se estragam sonhos assim, tornando-os possibilidades neste nosso mundo. Imagina tu que todo o nosso inconsciente, colectivo e individual, era descoberto. Que nos restaria? De modo que eu teimo em manter algumas profundezas, fingindo até por vezes que não as vejo quando insistem em aceder à superfície. E além disso fixar a ficção/os conteúdos espongiformes (riscar o que não interessa) dá trabalho, meu bem, dá-me por favor um descanso, dá-lhe tu hoje banho que eu agora só quero sentir as mãos da dra sra massagista.

Estão atrofiados e libertam toxinas, entende? A massagem dá um certo alívio mas são muitos anos de maus hábitos posturais.

São muitos são, meu bem. Embora vendo com outros olhos, se construirmos a realidade numa escala mais universal, tendo em conta por exemplo o tempo em anos luz daqui ao sol, tantos anos são praticamente equivalentes a zero, que é como quem diz que afinal é como se tudo começasse agora, neste instante. É a sério e é agora. Melhor, numa escala universal eu posso começar do zero mas com 32 anos de maus hábitos posturais, e este é um sonho tão estonteante que só poderá ficar entre nós, minha sra dra massagista. Toca a calar o sonho, que bem sabes basta mudar o contexto para que as coisas adquiram nova função, e afinal esta que inventámos para o sonho que é a de comandar a vida é bem bonita, não? E se ele se tornasse realidade eu teria de decidir. E eu sei lá se quero recomeçar gato ou humano.

domingo, 14 de março de 2010

Segredo (2)

Eu sabia que eles guardavam segredos...


domingo, 28 de fevereiro de 2010

Segredo

Começo assim, que além do tempo escassear, a escrita quer-se científica, directa, sem rodeios. Ando a descobrir que tudo pode ser simultaneamente bom e mau, bonito e feio, e mais um ou outro par de antónimos. Como se a vida começasse a fazer sentido na falta de sentido que tem. Fui então ao baú das minhas personagens e resolvi que talvez tu, querida Vera, fosses a mais apropriada para eu reinventar neste curto espaço temporal que disponho para te falar, no meio dos outros tantos papéis que nos vemos obrigados a desempenhar.

Quem fala?

Daqui satélite. Esta piada é privada, e colocando-a aqui crio rapidamente uma pequena aliança com quem a reconhece. Ao escrever-te existes sem existires, e isso é maravilhoso, porque me dá segurança constringindo-me as possibilidades da minha própria existência (que afinal não dizem que são só metade nossas, as palavras?), deixando-me no entanto uma liberdade considerável no sentir. Desculpa criar-te assim, repentinamente e sem avisar, ando ainda a aprender a controlar esta impulsividade. Mas às vezes a indefinição torna-se tão insuportável, Vera

Quem fala? Quem é?

que assim ao perguntares-me quem sou sempre me vejo um pouco obrigado a definir-me, ou no mínimo ao que sinto. Estou bem! Seguido de um descanso. Porque Vera, começo lentamente (que se vires atentamente não colidirá com a palavra “repentinamente”, o segredo da vida está na elasticidade na conciliação dos advérbios), repito, lentamente, a ter um problema grave, porque constato que, tal como com a música, poderemos estar bem e mal ao mesmo tempo, e ser trágicos e cómicos e tranquilos e românticos e tensos e lentos e rápidos e felizes e infelizes e ficção e realidade. Quando não existes, querida, querido, começo a não saber se estarei bem ou mal ou mesmo alguma coisa. E de repente, Vera, amor, sou imagens e sons e lágrimas e sorrisos e sons de novo e a lamparina confunde-se comigo, juro! ela confunde-se comigo e com a música e com o livro de física e com o candeeiro a abanar porque está vento, e com a gata no seu ritual de limpeza. São seis elementos contando comigo, numa harmonia que se tu soubesses...nem sei o que farias. Nada disto é limpo mas é tão limpo, e eu às vezes acho que a gata sabe de tudo isto tão bem e guarda segredo. Aposto contigo que ela guarda segredos propositadamente, talvez para manter a sua individualidade não se expondo, ou então para se vingar de eu chegar tarde a casa. É o conjunto, a mistura, a mixórdia, no limite o sujo, que lhe dá sentido e beleza. Se tu soubesses como é simples e está aqui tão perto, Vera, está aqui mesmo nestes metros que nos separam. Se tu soubesses como toda a vida cabe nesta lamparina nesta lamparina nesta lamparina. Se tu soubesses.

Quem fala?

Mas eu não te digo.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Carnaval

Cara Dra. Faz frio, estão graus negativos. Tenho saudades do sol de Lisboa. Mas o chão aqui é aquecido. Entrei há pouco numa ourivesaria ali do quarteirão, e fiquei algum tempo a apreciar os anéis. Nunca lhe contei Dra, mas quando era pequena ficava extasiada a contemplar o brilho do ouro. Julgo que a palavra contemplar se aplicará bem, porque me sentava naqueles bancos altos e passava lá tanto tempo que me perdia concentradamente, e as minhas mãos nem ficavam suadas. Noutros raros momentos o mesmo terá acontecido, como quando passava com os braços nas almofadas de seda da minha avó, e hoje em dia quando inesperadamente adormeço com o sol a bater na janela da sala, ou quando por um acaso noto como a luz incide com um ângulo perfeito sobre uma folha. Pensei agora em colocá-la a perguntar-me o que será comum a todas estas situações, e dessa forma reproduzir mais fielmente as interrogações internas.

E porque não o faz?

Para lhe tirar poder à personagem, dra. Escrevo-lhe então deste sítio distante, o que me aumenta mais o controlo. Sabe como este tema é premente nos dias de hoje, e quando exploramos bem surge tantas vezes associado ao tema da responsabilidade. Queria dizer-lhe que no outro dia, no caminho do Loures shopping para casa, adormeci no carro da Ana. Tenho a certeza que está agora com um sorriso, eu dormia mas sorria também, não é sempre que nos deixamos assim embalar. Já lhe aconteceu não entender nada do que lhe dizem e ser invadida por uma tranquilidade inigualável? Segredo-lhe que por vezes, na calada da noite, ponho-me a ler livros em alemão, apenas para me ouvir a emitir aqueles sons. É uma calma que nenhuma compreensão me poderá dar. Gostaria de experimentar umas consultas numa língua totalmente incompreensível, e talvez assim sentisse que me abarca, prolongando um pouco aquela minha ilusão acriançada de ser toda durante 50 minutos, e não apenas uma das minhas personagens. Criar-lhe-ei também uma transparência a si, o que fará com que provisoriamente se sinta impedida de me analisar. Todo e qualquer passado, presente ou futuro que queiramos co-construir nesse espaço comum será com base na incompreensão. Afinal parece-me que a transparência pode estar tão perto do caos. Serei frontal agora, ganho balanço na cadeira para lhe conseguir dizer que, apesar de eu entender que é carnaval, a sensação súbita de sermos apenas dois meros seres mascarados causou-me uma dor aqui, dra, nesta zona aqui. Eram cinco da tarde, a única hora do meu longo dia em que havia uma maior probabilidade de partilhar transparências. Partilhas comigo a tua transparência? Espera, só mais 5 minutos e já te dou, estou quase a passar de nível. E zás! Oh inclemência! Oh martírio! Estará porventura periclitante a saúde desse nobre e querido menino que eu ajudei a criar?! Na sua análise colocou-nos personagens, dra, uma traição à minha exposição, o que pode constituir um dano moral considerável, apesar de sair da objectividade do direito penal. Convirás que tamanha traição criará grande dor (perdoa-me a proximidade, a emotividade da passagem fez-me tratar-te por tu), ainda que estejamos já todos certos, através do princípio da realidade, que mascarados andamos sempre, que o carnaval não são só dois dias. Vou hoje tirar o domingo para viver um pouco no princípio da irrealidade, que a informação é muita e o mundo anda demasiado espartilhado. Espartilhaste-me, esquartejaste-me, fragmentaste-me, para utilizar uma linguagem pós-moderna. Pergunto-te, pergunto-me (que não fujo às responsabilidades) onde foram parar os Peters e os charlies e as blondinas e os reis e as rainhas e os capuchinhos e as belas e os monstros e as wendys e os príncipes e os sapos e os aladinos e todos os animais falantes e as brancas e os anões e as pocahontas, que ainda não apareceram nos textos mas há espaço para todas as princesas. No fundo da minha transparência queria dizer-lhe que julgo que o que há de comum nas situações que lhe expus inicialmente será o brilho ou equivalente sinestésico, como a sensação da seda na pele. Apesar de ainda não saber bem por que razão o brilho me dá a segurança de que preciso para me deixar adormecer. E depois desta minha análise peço-lhe que me devolva as personagens. Por favor. Devolva-me.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Umas mãos deliciosas


P: Wendyzinha…

W: Peter! Ainda bem que apareceste! Peter tenho de te contar já, ontem esteve cá um conjunto de personagens de vários filmes, e comentámos que o capitão gancho anda desaparecido, inclusivamente do facebook. Houve de tudo, simulámos até as lutas dos filmes. Tive medo que nunca mais voltasses.

P: Sabes que não perco uma festa dessas. E prometi-te estar sempre presente. Como podes duvidar?

W: Não dependes de mim, menos ainda do meu desejo. Guardei-te o olho da Sininho. Estive indecisa entre o olho e a mão, a sininho tem umas mãos deliciosas. Que saudades Peterzinho. Falávamos sobre a necessidade de estar disponível para que algo surgisse, e resultou! Fui-me deitar a pedir-lhe que te criasse hoje, nestas horas em que escreve, e prometi-lhe estar disponível para as várias personagens. Olhou para mim e sorriu-me, sabes aquele sorriso de quem ama e protege e te permite ser espontâneo? Peter, sei que não estás ainda por dentro destes conceitos, mas ser espontâneo não significa impulsivo ou sem controlo. As palavras que te digo são pensadas, por vezes escolhidas a dedo. Digo-te isto não vás pensar que o meu amor por ti é fruto apenas de um desejo incontrolável. Disse-lhe então: poderás (temos uma relação próxima, informal) criar algo em que entre o Peter? Porque a Mary Poppins tinha-me dito que era necessário operacinalizar os sonhos, e eu resolvi operacionalizar-te a ti. Foi ainda antes de me deitar, no cheio da noite. Sabes que é no negrume que nos juntamos todos, e durante o dia, dependendo da luz, que por sua vez depende do humor do técnico (quantas dependências meu deus), de dia surge iluminada uma ou outra personagem. Nem ela tem todo o poder de te pôr em cena, são muitas variáveis. Desculpa se são muitas palavras e poucos parágrafos, ler-me-ás assim também de seguida? Tenho pouco tempo para todos os assuntos a tratar. O tom seguinte é sério, prepara-te, e se estiveres atento notarás estas mudanças, a palavra “tratar” introduziu um tom emocional neutro, como se falássemos de um negócio. Desculpa, podes colocar o Peter Pan a fazer-me uma pergunta que me ajude a estruturar o discurso?

P: Diz-me para te perguntar se te tens sentido a mesma, porque te tirou as lágrimas durante um tempo.

W: Foi ela então! Tem-me roubado o sentir!

- Apenas o mau Wendy, desculpa intervir na conversa. Precisei de fazer a experiência. Pensa bem, o que acharias tu de mim se um dia descobrisses que afinal todas as tuas lágrimas foram uma ilusão que justificou um outro desejo, Wendy. Nem sei bem como dizer isto a alguns de vocês, imagina então aqueles com mais dificuldade em expressar-se, ficarão furiosos.

W: Peter, podes traduzir-me por miúdos o que nos diz?

- Imagina tu se por um acaso a necessidade básica, primária, é a de mudança. Explico-te de outra forma: porque mudas, Wendyzinha?

W: Para retirar as minhas lágrimas.

- E se tudo for ao contrário, e te disser que as tuas lindas grossas lágrimas não existem senão para que sintas que te tens de transformar? Como no filme que vimos na 6ª. A identidade está na luta, Wendy, não no conteúdo das lágrimas. Elas constituem apenas a razão que te dou para mudares.

W: Se me disseres não acreditarei. As minhas lágrimas estão no início, não no fim do processo! Peter, faz alguma coisa, ela está a tirar poder às minhas lágrimas! Por favor, diz-lhe que não teorize num dia como este, que nos tira espaço para os dois, logo hoje que me disponibilizei. Explica-lhe que nos amamos, e que só temos estas parcas horas para falarmos um com o outro: então como estás tu? Bem, e tu, o que fazes? e nisto quem sabe até voar um pouco, tinhas-me prometido um voo como prenda de anos. Enquanto escreve eu posso finalmente sentir o vento na cara, ao ponto de ter de fechar os olhos, tal é a vertigem. Sou mera personagem, só quero sentir o vento, só o vento, só o vento. Vuuuuuuuuuuuuuuuuu. Se a história mudar que não me tire o vento, não o vento, não o vento. Saem-me lágrimas dos lados, mas é da velocidade. E agradece-lhe rápido o vento e as lágrimas destes minutos finais, Peter Pan. Que julgo, ou sinto, que lhe estão a acabar as palavras.

sábado, 16 de janeiro de 2010

A razão do cão


E o que acontecia no seu sonho?

- Então querida, uma questão não é uma boa forma de começar uma narrativa. Terás antes de definir o contexto, para que possas estabelecer uma ligação com o espectador.

- A estrutura pode estar a mudar. Temos de ser flexíveis neste mundo em transformação.

Havia dois gémeos, os dois dentro de uma bolha de sabão. Oscilo, no próprio sonho, entre a observação desta imagem e a participação activa, em que a visão se torna turva e o mundo indefinido. Um sonho dentro do sonho, a minha bolha de sabão. Alternávamos os dois entre chorar e rir, puramente cúmplices em algo essencial.

A que atribui a imagem dos gémeos?

Talvez à necessidade que ele seja eu. Estarei a ser egoísta? Porque na realidade apenas te amo porque nesses breves momentos sorris e te comoves, e porque os dois atribuímos a forma de cão àquela nuvem (aquela amor, não vês…?), crendo eu assim que os teus circuitos neuronais são exactamente os mesmos que os meus. Pergunto-me para que teremos nós desenvolvido esta capacidade de acharmos que acedemos aos mundos uns dos outros.

Talvez para cooperarmos. E terá, ao longo desse caminho, havido um processo de diferenciação do self. Daí a constatação de impossibilidade de comunhão com o outro.

- Acho complicado esta mistura de linguagens. Terás de decidir se te diriges a determinada população alvo, como o universo dos psis, ou a um qualquer outro fragmento da população. Tens de encontrar um nicho de mercado. São as leis do marketing.

E terá valido a pena a criação desta fonte de angústia, quando finalmente entendo que em vez de um cão vês antes um qualquer outro bicho naquela nuvem? Ou talvez apenas uma nuvem? Quer que acredite que nos iludimos os dois pensando que éramos um apenas para cooperarmos?! Confesso-me, odeio-te por vezes (volto a falar contigo. Deus me livre de vir a odiar a Dra. Margarida). É que vê, é tão intenso este meu desejo que notes que a vida parece estar presente em toda a matéria, até no Peter Pan, que é matéria imaginada. Insisto em manter a confiança de que os dois poderemos ser simultaneamente diferentes e iguais (máxima que já constituiu um slogan, o marketing anda lentamente a entrar pela minha vida, embora ainda com algum pudor) e repara como o tema da identidade se cruza com o do amor. E por fim confesso também, querido, que durante o caminho para casa, agora à saída do curso, me estampei com o carro para não atropelar um cão. Vinha louco o cão, coitado. Venho louco de amor!, ladrava-me com a sua voz rouca, justificando-se. Perdoei-o, claro, afinal foi só um farol que se partiu, e o amor pareceu-me uma boa razão para a sua loucura. Partiu-se também aquela esperança de que me atendesses e que me descansasses, que afinal era só um farol, que importância tinha. E partiu também a nuvem, com o cão, mas isso eu não lhe disse. Era demasiado para um cão só.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Água



João. Tive medo que as imagens e as palavras nunca mais me surgissem, e que de certa forma algo mais do que o ano terminasse. Que afinal é para isso que os anos servem, para serem terminados, esquecendo-se por vezes o mundo que o velho terá de continuar em nós para que nos sintamos os mesmos. Enfiei-me então naquele meu sítio e deixei-me ouvir o silêncio da água a correr, constatando que ela era a mesma, a água. Os gerúndios dão-me uma certa sensação de continuidade. A água é constituída apenas por dois elementos diferentes. E a verdade é que os símbolos entram em nós sem nos darmos conta, porque esta sensação de voltar a mim enquanto a água me bate nas costas não se deverá às suas propriedades químicas. A seguir vim escrever-te, não sem antes colocar as malas à porta. Estamos de partida, apesar de sobrarem perguntas. Gostava tanto de matar as perguntas que restam, e fazer durar aqueles momentos de certeza. Será possível que também eles sejam ilusão minha? Pergunto-me (que prazer masoquista este) como terei chegado até eles, e tento repetir o processo. Porque Dra., teve de haver um certo despojamento inicial.

Esse início não é controlável. Terá de esperar que aconteça.

Para poder olhar o que restava de mim. Atenção, não existe aqui qualquer laivo de vitimização, apesar da palavra “restava”. Foi apenas o significado que atribuí àquele período a que só tu tiveste real acesso. Enfim, isto do real é discutível, e talvez esta minha sensação do teu acesso ao meu real tenha a ver com o facto de não existires.

A forma e o conteúdo não batem certo, tornas-te ambivalente. Se queres dar a ideia de vazio essencial terias de falar pouco.

Senti-o, mas que queres, será necessário voltar atrás na forma para que surja algo novo. Tinha de fazê-lo de alguma maneira, e apresentar-to assim, afirmativamente. A seguir cheguei então àquele ponto em que sentes que te sentes, e olha bem a ironia, quando finalmente julgo que serei algo de parecido comigo, concluo que nunca poderemos ser os dois. Engano-te permanentemente, João, é inaceitável este meu comportamento. Tive então uma ideia mirabolante, que foi a de te matar para que pudesses voltar para mim, que a saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento, diz uma canção que tenho no carro. Imaginei as várias formas possíveis de o fazer. Quererei impressionar-te com a minha franqueza? Dar-te um tiro seria o melhor para ti, acabavas sem sofrimento, mas faltava-me o gerúndio. Tinha de te matar matando-te, não poderias passar directamente do estado sólido ao gasoso. E então, já mesmo no fim do texto, fiz a ligação com a minha água inicial, primordial. Serve esta carta para de uma forma tímida, apesar de franca, perguntar-te se quererás, porventura, um dia destes, sem programar nada que estas coisas não surgem quando as procuramos, pegar nas malas que pus ali à porta e ir andando comigo, ir ando comigo, ir andando comigo. Em direcção ao mar.