sexta-feira, 25 de setembro de 2009

RNA mensageiro

Não fazia ideia, amor. Porque não me contaste tudo isso antes?

De alguma forma pensei que soubesses.

Como saberia?

Perdes-te tantas vezes longamente a observar as minhas costas…Pensei que por cada segundo que lá passas me observasses a um nível cada vez mais profundo, e pudesses entender sem to dizer. Primeiro olhas as costas por inteiro, e depois a omoplata saliente, e depois o pescoço, e depois estes pequenos cabelos que temos nesta zona, ao pé da orelha.

São pelos que tens aí, não são cabelos.

E depois este bocadinho de pele. Quando observamos bem, assim com olhos de quem quer compreender, vêem-se uns sulcos, que não chegam a ser as paredes das células, mas aqui dá-me jeito dizer que sim, porque me interessa a imagem das minhas células a tocar-se. E depois, se olhares com a outra visão, tens aqui de treinar a tua atenção, estou convencida que vês as minhas moléculas, e dentro delas o núcleo, onde vês não apenas o meu ADN, mas também aquelas polimerases que fazem a transcrição, que consiste na síntese de RNA mensageiro. Este processo, este último, é universal. Nota bem, de entre todos os conteúdos de que te falo, é o mais micro que é universal. A nossa tendência será a contrária, não? De olhar para o universo para encontrar o universal. Achas que posso ficar aqui para sempre, colada à célula da pele do meu pescoço?

Para sempre não, há que ser flexível. É o movimento que é importante, a tua atenção deve estar no salto. Para que possas sempre regressar.

E se me perco na ida?

Puxas-te entretanto, mas suavemente. Sem julgamentos. Começarás a sentir que decides. Quando vais, e quando ficas. E bem sabes como sentires que escolhes é importante na transformação da história.

Porque aprendemos a não escolher?

Talvez para reagirmos rápido.

Não será bom então esse automatismo?

Terá sido. Num outro contexto. Aquele que me faltava para compreender o teu núcleo. Porque não me contaste tudo isso antes?

Porque pensei que soubesses. Mas lá no fundo, talvez fosse para que me perguntasses, amor.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Relatividade especial

Dra Sininho…

Diga.

Posso fazer-lhe uma pergunta indiscreta?

Pode.

O seu cabelo é mesmo louro?

É importante para si?

Qualquer possível alteração neste momento é importante para mim. Conhece-me, sabe como são estas fases, é muita informação para gerir. Vou-me então certificando, pé ante pé.

São fases difíceis para todos.

Essa estratégia é de normalização. Mas sabe como terá de ser equilibrada com a ideia da minha especificidade, mesmo nas fragilidades. É engraçado, é importante sabermos que somos todos frágeis da mesma forma, mas que até nisso somos únicos. Sou especial para si, dra sininho? Apesar das minhas personagens serem afinal as mesmas que as dos filmes de animação?

Claro. As personagens são as mesmas mas o todo é diferente. O que acha que a fará sentir-se especial comigo? Ou o que lhe faltará para que tal aconteça.

O que fará que as mesmas partes criem todos diferentes? E agora inverteu o processo, dra. Sendo essa pergunta genuína, pergunta-me directamente a minha opinião. Julgo que são coisas pequenas. Desculpe, mantemos conversas paralelas, o que criará alguma confusão. Mas assim condensamos. Se fossemos separar os vários temas poderíamos ocupar mais do que o tempo estipulado, e mais do que o espaço de uma página, e sabe que espaço-tempo é aquele sistema de coordenadas para o estudo da relatividade, geral e especial. Vê como os temas se encaixam sem sequer darmos conta de como isso acontece? Senti-me especial, por exemplo, quando vi as suas lágrimas ao descrever-lhe aquele encontro da Betty Boop com o monstro das bolachas. Na altura balbuciou “que engraçado”. Julgo que sorria também. Mas as suas lágrimas, dra sininho, foram o factor decisivo. Talvez por me terem indicado que naquele momento vivia, de facto, a minha história.

A junção das personagens num todo é sua. Não será criação de uma personagem. Antes algo mais essencial, mais pequeno, mais simples. E porque acha que as lágrimas davam indicação que lá chegava? Ao centro.

Acha que o todo não é uma personagem que contém todas as outras, dra? Hoje está bastante afirmativa. Eu não sou apenas mais uma personagem? As lágrimas mostraram que os seus neurónios empáticos se ligavam à minha história através de um qualquer fio condutor. Aqueles de que falava há um ano atrás e que segundo as notícias são afectados pelos jogos de vídeo. Sabia? As crianças que jogam muito choram menos com as histórias dos outros. E de repente, após as lágrimas, era já a Sininho da minha história. Como sabe? Sobre o todo que não é personagem.

Talvez não saiba. Será outro tipo de neurónios a dar conta que existe sem personagem? Mas além de todas as dúvidas prometo-lhe que, para si, o meu cabelo é mesmo louro.





quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Exposição

Estranho-te. Que se passa?

Até eu estranho o meu silêncio.

Alguma razão concreta?

Julgo que a função da exposição anda a mudar. Mas ainda não terá adquirido nova forma.

Não entendo.

Lembras-te quando me disseste que te contava os pormenores todos? Há já muito tempo.

Não me lembro de todo.

Nessa altura falava que nem uma desbragada. Contava-te o que me tinha acontecido no autocarro, quando quase deixei de respirar ao engasgar-me, ainda me lembro tão bem da mala da escola nesse 8ºano. E que o saco do lixo se tinha rompido no elevador, com o senhor do 4º andar a olhar para mim e para o chão alternadamente. E como tinha acordado nesse dia com um murro no estômago, depois daquele sonho que tinha tido com o Peter Pan a escovar-me o cabelo, que ia caindo, caindo, e ele a dizer com escárnio que o meu cabelo era fraco. Que fraco é o teu cabelo, que fraco é, dizia assim. Eram entretanto muitos Pans, todos a tocar flauta. E tu disseste-me que todos aqueles pormenores não interessavam. Passei a prestar atenção.

A quê?

Aos teus gestos e às tuas palavras. Eles protegiam-me, e não poderia correr o risco de voltar a sentir aquela mágoa. Os meus pormenores eram importantes para mim. Fui metendo as palavras todas para dentro, as minhas e as tuas, e os teus gestos, e a tua pele. Foram muitas palavras e muitas peles e muitos cheiros, e até os cheiros foram engolidos, não foram apenas cheirados, e ficaram todos juntos num silêncio imobilizador. Estás a seguir o processo?

É para isso que cá estou. Para a ouvir.

Pois será. E essa foi uma terceira fase, aquela em que a Dra me ouviu. Eram 50 minutos avassaladores na quantidade de pormenores que sabia irrelevantes mas que, precisava eu, não seriam irrelevantes para si. Entretanto, com o hábito, talvez das férias, deixei mesmo de ter o que quer que fosse para lhe dizer, Dra Sininho. Será que foi o seu papel que mudou? Por ter a certeza que lá está, independentemente do conteúdo? Toda a exposição servirá para isso?

Talvez.

Poderá ser mais afirmativa agora, julgo, e dar-me a sua opinião. Tem sido longo este processo. Sabe que a quantidade de opiniões vai aumentando ao longo das sessões? E vão diminuindo os hum hums. Será este um pormenor interessante? A Dra. também terá aprendido esse equilíbrio, sobre a quantidade de hum hums e de opiniões que poderia aplicar em cada caso. Será que…Dra Sininho, também já sonhou com Peter Pans?

Claro. Os processos são os mesmos. E talvez haja uma outra fase. Em que a exposição adquire outra função.

Interessante, dizia isso no início desta conversa. Quando tentava entender o que significaria o meu silêncio. Que função, Dra. Sininho?

Não seja ansiosa. Descobrirá. Eu sou uma fada, e estou habituada a esperar, porque o meu maior sonho é vir a ter o tamanho dos humanos para poder abraçar o Peter Pan. E isso vai acontecer-me. E isso vai acontecer-lhe.