segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Referenciais inerciais

O mês tem sido bom. Levanto-me cedo para ir trabalhar. Pelo caminho, ouço música e ponho o volume no 15, e conduzo bem depressa. Esta é uma das vantagens, quando o mundo parece parar, temos a ilusão de finalmente podermos andar. Nota que até a velocidade é relativa, não sendo possível distinguir dois referenciais inerciais. Silêncio agora, concentração, ouço-os a chegar.

Posso mandar entrar, Dra?

João. Há momentos em que tenho a certeza que andaremos à mesma velocidade, ou que estamos os dois parados.

Manuel, Dra, o meu nome é Manuel.

Porque não nos distingo, e estou segura de que nem um observador exterior a este sistema o poderia fazer.

A Dra. o diz e é verdade, sem desconsiderá-la mas não se distingue mesmo, cá dentro ou lá fora vai dar tudo ao mesmo. Apesar do exterior me assustar ainda, de certa forma estes muros deram-me algo que nunca obtive antes.

Revelo-te aqui, na presença de todos e de ninguém (e esse é o melhor de dois mundos, quando o paradoxo se desfaz), que ontem me passaste os teus dedos pela minha cara, e eu soube que eram teus porque eu tenho um detector das tuas impressões digitais. Ele apita incessantemente nesse momento, imprimindo-me o som em todas as células do meu corpo, reactivando a ligação entre esse estranho neurotransmissor e os seus receptores. Tudo isto na esperança de que não me esqueça de que existes também na matéria.

E eu não me esqueço Dra., não esqueço, há instantes em que a ficha nos cai e parece que toda a nossa vida nos passa diante dos olhos. Aqueles momentos em que sabemos que temos de ser nós.

Eu permaneço em silêncio nos segundos subsequentes, antes de começar de novo a interpretar a minha imagem agora reflectida no espelho da casa de banho desta casa deste bairro desta cidade deste país deste planeta deste mundo. Porque apenas no silêncio posso realmente tocar-te, ainda que com as minhas palavras.

Era como se não fosse eu, entende Dra? Olhei-me ao espelho e pensei: não sou o mesmo de antes. Talvez seja eu agora.

Retiro então o excesso de água, começando lentamente a acelerar, são 7.45 da manhã e apesar do vazio de Agosto há ainda uma distância a percorrer. 5km/hora até ao quarto, chatice ter de levar calças com este calor. 10km/hora enquanto constato que já quase não tenho café. 15Km/hora, todos os dias a cena da gata a esconder-se no exacto momento em que penso ir fechá-la. 20Km/hora e começo já a sentir saudades, que saudades João

Manuel. Acho que esse silêncio vem de Deus, Dra.

30 Km/hora e desço as escadas a correr e 50Km/hora a velocidade de comer três bolachas e 60Km/hora para rodar a chave e 90Km/hora é um absurdo na cidade assim mesmo sem vírgulas ou qualquer tipo de sinais. E os nossos referenciais são agora não inerciais, olho distraidamente pela janela e consigo já avistar-te lá fora, se não fosse o volume no 15 poderia até dizer-lhes a que velocidade estás. Que dizia, Manuel? Sobre o silêncio.

João, Dra. Manuel era o anterior, o meu companheiro de cela.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

De que os meus cabelos eram mesmo tranças imensas a ondular no mar

Tocam os sinos, são 12h. Por favor apressai-vos, não quero atrasar-vos por minha causa.

O comboio espera por mim, estamos no reino do sonho. Falta-nos um final.

Cavaleiro. Talvez o final nos falte por falhar-nos também o princípio, reparai como quase sempre a coda se reporta à exposição inicial, ou mesmo ao título. Desculpai-me, é de dia, e é sempre tão mais difícil encontrar estrutura para os meus textos, o sol teima em iluminar outros assuntos. Mas cavaleiro, tenho trabalhado no assunto, fui uma série de vezes ao mar e perguntei-lhe, com toda a reverência:

- Meu mar, podereis conceder-me (achei que a palavra era mais reverencial do que simplesmente “dar-me”) o princípio da história?

Respondeu-vos?

O mar é como a vida, responde-nos com o movimento das suas ondas. Vem e vai e vem e vai-nos (conseguireis ouvi-lo?) despojando dos acessórios, tira-nos os brincos, as pulseiras, rasga-nos a roupa (toda toda), sendo estes os acessórios exteriores, e arranca-nos sem piedade os pensamentos, e por fim as emoções. Eu fico a boiar com as minhas tranças onduladas que se espalham mar dentro e que nos ligam, a mim e a ele, ao mar. Sabeis os cabelos das deusas gregas? É assim que os imagino, e este é um segredo que vos conto: por vezes recolho-me, ali naquele canto, e permito-me ter longos cabelos ondulados cheios de tranças, e ouço o sino que ressalta na quietude das cigarras. Este tempo faz-me sempre, sempre, lembrar o verão em casa dos meus avós, em que me perdia a ler os livros da patrícia e a jogar ao 7 imaginando quem seria os participantes, uns vencedores outros perdedores, que interessa ganhar ou perder? Interessa viver. Sabia que aquele silêncio ninguém mo iria tirar durante os 3 meses de férias, 2160 horas de um maravilhoso silêncio que me permitia ouvir os passos das pessoas a andar na rua e também o sino dessa terra distante a bater as 12h, cavaleiro, que te atrasas. Mas adiante, que faltam apenas 45 minutos para ir trabalhar, não é só o tempo subjectivo que encurta à medida que crescemos. O mar está cheio de segredos, estão presos nas conchas e nas pedras, e talvez seja por isso que gostamos tanto da natureza. Ela guarda todo o conhecimento sobre todos os homens de todos os tempos. No fundo no fundo talvez seja meu desejo que descubras todos os meus segredos, na esperança de que eles nos unam para sempre, apesar de eu ter aprendido com a minha gata (que curiosamente veio agora deitar-se ao meu colo), que gosto tanto dela sem que no entanto algum dia possa vir a conhecer verdadeiramente o seu mundo.

E que vos disse, o mar? O comboio parte sem mim, estamos já na vida real.

Segredou-me então, através do búzio que coloquei no ouvido enquanto boiava:

- dá um fim, ao texto. O fim dar-te-á o início.

E as ondas a ir e a vir, vchhhhhhhhhhhhh, e as tranças e as pulseiras e…

…e eu entendi então, cavaleiro meu, como isso dos inícios e dos fins nada tem que ver com amor, meros acessórios humanos parecidos com o anel de que te falei há uns textos atrás. E são 12h, mas vendo bem é já 1h e 17 minutos de um novo dia, o meu imediatismo fez-me crer que o processo seria bem mais rápido. O mar eliminou todos os tempos e todas as horas e todos os minutos, e por um instante não mensurável revelou-me em avalanche todos os segredos do universo e deu-me a certeza. De que os meus cabelos eram mesmo tranças imensas a ondular no mar. E de que esse teria sido o início, e este seria o fim.