domingo, 2 de maio de 2010

Overloading

Alex. Escrevo com dificuldade, porque os horários são rígidos, chega aquela hora e ficamos sem luz. A vida é por vezes difícil por aqui, brother. Durante o dia a luz distrai-me, e há também as actividades. Enfim, acordamos e dizem-nos quem somos, o que é já um descanso. Nesta ala somos quase sempre Peter pans, brother, porque somos mais novos. No dia em que me mudarem para a H ficarei perdido, mas não vale a pena antecipar os acontecimentos. É curioso, imagina Peter pans presos, parece um contra-senso dado o facto do Peter voar, os humanos são peritos na criação destes paradoxos. Bro, hoje houve aula de capoeira na A, foi um tanto libertador, sobretudo porque o formador nos disse que se trata de uma dança-luta desenvolvida pelos escravos. Interessante, nota como as artes marciais têm vindo à baila (!) (exclamação inserida no meio do texto para indicar a introdução involuntária da expressão “vir à baila” após a ideia da dança, mostrando-nos um pouco do funcionamento cerebral) nos últimos tempos. E Alex, esqueci-me de começar a carta com os acontecimentos mais antigos, mas sabes como podemos começar numa determinada data e depois o processamento levar-nos mais atrás, bem lá atrás. Outro dia o Tito, sabes o meu companheiro de cela? Virou-se para mim e disse-me:

- Queres um cigarro?

E deu-me. Fumámos em silêncio, e digo-te Alex, aqueles 5 minutos foram os mais importantes dos últimos meses. Não desfazendo a tua visita, que os laços familiares serão sempre importantes, e a relação entre irmãos é a que normalmente dura mais tempo. Mas bro, com a sua fala o Tito introduziu três coisas importantes: o cigarro, que aqui dentro equivale a outros grandes prazeres no teu mundo; a iniciativa da proposta, rara, aqui dentro ou aí fora; a partilha de uns minutos de silêncio com o Tito, sem ser aquele silêncio constrangedor de quando te permitem vir comigo até ao jardim. Devo maçar-te com esta conversa do Tito, desculpa. Quando o tempo é muito para o espaço que o contém, a cabeça começa nisto outra vez, num looping, é um overload, bro. É tanta a informação que ela sabe que tem de sair por algum lado e eu rezo todos os dias que saia nos 5 minutos que nos dão de banho, porque aqui a imagem é ainda muito estereotipada, julgar-me-iam fraca. Como se a naifa que trago comigo sempre pronta não pudesse coexistir com lágrimas. Não os condeno, que com tanta condenação não poderiam mudar de vida nunca, nem os espíritos mais evoluídos. Overloading é também uma táctica de xadrez meu bro, em que a uma peça de defesa é dada uma nova tarefa que não pode completar-se sem que seja abandonada a tarefa original. São tantas tarefas e funções e peças e personagens e tácticas e estratégias, e estas últimas são duas coisas bem diferentes. Sabes o que são paradoxos, irmão? São altamente prejudiciais para o cérebro, dás uma informação para um dos lados e a oposta para o outro. É claro que poderás também considerá-los um desafio (palavra quanto a mim tão sobreutilizada no meio empresarial) permitindo-te desenvolver mais o corpo caloso, aquele que liga os dois hemisférios, e estruturas de ligação são uma mais valia neste mundo das relações. Vou terminar, que é quase de manhã e há as actividades, Alex, desculpa. Gosto tanto de te escrever, que se pudesse passava o resto da vida a fazê-lo, só para sentir menos uma condenação. Que é o mesmo que dizer o teu amor, quem não julga só poderá amar, calculo que não tenha alternativa. Troquei há pouco o género de propósito, que assim permito-me ser sem riscos de qualquer ordem. Além disso, julgo que terás mudado de morada, as cartas têm vindo devolvidas, o que faz com que eu seja simultaneamente o emissor e o receptor. E digo-te, esse tem sido o maior desafio, percebo a tua mudança de casa. Juro que percebo (tento convencê-lo, mais ainda agora, que chego à conclusão que ele sou eu). Meu bem. Meu bro.

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