segunda-feira, 30 de março de 2009

Conselhos da Lagarta

“Ora, não vale a pena chorar assim!”, disse ela para consigo, com bastante severidade. “Vamos mas é calar-nos já!”. Ela, geralmente, dava muito bons conselhos a si própria (apesar de muito raramente os seguir) e às vezes auto-censurava-se com tanta dureza que lhe vinham as lágrimas aos olhos; e lembrou-se até daquela vez em que tentara puxar as orelhas a si própria por ter feito batota num jogo de críquete que ela estava a jogar sozinha contra ela própria, pois esta estranha criança gostava muito de fingir que era duas pessoas.

“Mas não vale a pena, agora, fingir que sou duas pessoas”, pensava a pobre Alice, “pois já pouco resta de mim que dê para fazer uma pessoa que se veja!”.

[…]

- Quem és tu? – disse a Lagarta.

Estas palavras não eram lá muito encorajadoras para começar uma conversa. Alice respondeu timidamente: - Eu…senhor, eu agora neste momento nem sei. Sei, pelo menos, o que eu era, quando me levantei esta manhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde essa altura.

- Que história é essa? – disse a Lagarta, com um ar severo – Explica-te bem!

- Eu não me posso explicar, senhor, porque eu não sou eu, percebe…- disse a Alice.

- Não percebo, não! – disse a Lagarta.

- Acho que não me sei explicar melhor – respondeu Alice, muito delicadamente – porque, para começar, nem eu mesma percebo; mudar tantas vezes de tamanho, num só dia, faz muita confusão.

- Isso é que não faz - disse a Lagarta.

- Bem, talvez o senhor ainda não tenha sentido isso – disse a Alice – mas quando tiver de se transformar em Crisálida, sabe, isso há-de acontecer-lhe um dia, e depois disso em borboleta, penso que vai achar isso tudo um pouco estranho, não vai?

- Não vou achar mesmo nada estranho – respondeu a Lagarta.

- Bem, talvez o senhor sinta de uma maneira diferente – disse Alice - ; tudo o que sei é que, se fosse eu, achava isso muito estranho.

- Se fosse eu…! – exclamou a Lagarta, com um ar de desprezo. – Mas quem és tu?

[…]

- Então tu achas que estás mudada, não é?

- Acho que sim – disse Alice -, não consigo lembrar-me das coisas como dantes e não consigo ter o mesmo tamanho durante mais de dez minutos!

- De que espécie de coisas é que não te lembras? – perguntou a Lagarta

- Bem…eu tentei recitar a história da abelhinha, mas saiu-me tudo muito diferente! – respondeu Alice, com uma voz muito triste
[…]
- …eu gostava de ficar um bocadinho maior, se o senhor não se importar – respondeu a Alice - , oito centímetros é uma altura tão desagradável de se ter!

- É uma altura mesmo muito boa! – disse a Lagarta, zangada, endireitando-se toda enquanto falava (ela tinha exactamente oito centímetros de altura).

- Mas eu não estou habituada! – defendeu-se a pobre Alice, lastimando-se. E pensou: “Era bom que estas criaturas não se ofendessem com tanta facilidade!”

- Hás-de habituar-te com o tempo – disse a Lagarta; pôs o cachimbo na boca e começou a fumar outra vez. […] Um dos lados é que te há-de fazer crescer e o outro é que te há-de fazer minguar.

“Um dos lados de quê? O outro lado de quê?”, pensou Alice.


Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

2 comentários:

fifi disse...

Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.

1915?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa.
(Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 93.

http://arquivopessoa.net/textos/4194

inês disse...

A fifi anda por aqui...! Méuuu

Obrigada pelo texto e pelo link, não podiam vir mais a propósito.

Beijinhos!