“Ora, não vale a pena chorar assim!”, disse ela para consigo, com bastante severidade. “Vamos mas é calar-nos já!”. Ela, geralmente, dava muito bons conselhos a si própria (apesar de muito raramente os seguir) e às vezes auto-censurava-se com tanta dureza que lhe vinham as lágrimas aos olhos; e lembrou-se até daquela vez em que tentara puxar as orelhas a si própria por ter feito batota num jogo de críquete que ela estava a jogar sozinha contra ela própria, pois esta estranha criança gostava muito de fingir que era duas pessoas.
“Mas não vale a pena, agora, fingir que sou duas pessoas”, pensava a pobre Alice, “pois já pouco resta de mim que dê para fazer uma pessoa que se veja!”.
[…]
- Quem és tu? – disse a Lagarta.
Estas palavras não eram lá muito encorajadoras para começar uma conversa. Alice respondeu timidamente: - Eu…senhor, eu agora neste momento nem sei. Sei, pelo menos, o que eu era, quando me levantei esta manhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde essa altura.
- Que história é essa? – disse a Lagarta, com um ar severo – Explica-te bem!
- Eu não me posso explicar, senhor, porque eu não sou eu, percebe…- disse a Alice.
- Não percebo, não! – disse a Lagarta.
- Acho que não me sei explicar melhor – respondeu Alice, muito delicadamente – porque, para começar, nem eu mesma percebo; mudar tantas vezes de tamanho, num só dia, faz muita confusão.
- Isso é que não faz - disse a Lagarta.
- Bem, talvez o senhor ainda não tenha sentido isso – disse a Alice – mas quando tiver de se transformar em Crisálida, sabe, isso há-de acontecer-lhe um dia, e depois disso em borboleta, penso que vai achar isso tudo um pouco estranho, não vai?
- Não vou achar mesmo nada estranho – respondeu a Lagarta.
- Bem, talvez o senhor sinta de uma maneira diferente – disse Alice - ; tudo o que sei é que, se fosse eu, achava isso muito estranho.
- Se fosse eu…! – exclamou a Lagarta, com um ar de desprezo. – Mas quem és tu?
[…]
- Então tu achas que estás mudada, não é?
- Acho que sim – disse Alice -, não consigo lembrar-me das coisas como dantes e não consigo ter o mesmo tamanho durante mais de dez minutos!
- De que espécie de coisas é que não te lembras? – perguntou a Lagarta
- Bem…eu tentei recitar a história da abelhinha, mas saiu-me tudo muito diferente! – respondeu Alice, com uma voz muito triste
[…]
- …eu gostava de ficar um bocadinho maior, se o senhor não se importar – respondeu a Alice - , oito centímetros é uma altura tão desagradável de se ter!
- É uma altura mesmo muito boa! – disse a Lagarta, zangada, endireitando-se toda enquanto falava (ela tinha exactamente oito centímetros de altura).
- Mas eu não estou habituada! – defendeu-se a pobre Alice, lastimando-se. E pensou: “Era bom que estas criaturas não se ofendessem com tanta facilidade!”
- Hás-de habituar-te com o tempo – disse a Lagarta; pôs o cachimbo na boca e começou a fumar outra vez. […] Um dos lados é que te há-de fazer crescer e o outro é que te há-de fazer minguar.
“Um dos lados de quê? O outro lado de quê?”, pensou Alice.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas
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2 comentários:
Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
1915?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa.
(Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 93.
http://arquivopessoa.net/textos/4194
A fifi anda por aqui...! Méuuu
Obrigada pelo texto e pelo link, não podiam vir mais a propósito.
Beijinhos!
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