quarta-feira, 26 de maio de 2010

Acção

Querido Peter Pan. Desculpa a demora, mas por vezes tudo é tão rápido, que o processo de chegar até ti se torna mais lento. O que me vale é que é da tua natureza ser criança.

Estranho-te. Para que me falas?

Tentarei não fazer rodeios, e ir directa ao centro, acertando-te com a espada no coração, e desta forma libertando tudo quanto dentro dele possa estar contido. Trouxe-te também uma espada para ti, e através dela poderás expressar-te e proteger-te, são dois coelhos numa só cajadada. Há-de notar o leitor que esta minha personagem, que afinal é a primeira de todas, é um tanto misteriosa, apesar da sua constante presença vemo-la intervir pouco. Perguntei-me então qual a razão de tal incongruência, e cheguei à aterradora conclusão de que talvez tenha criado uma personagem cujo conteúdo e necessidades emocionais desconhecia, apesar da sua posição fundamental no jogo corrente.

(Silêncio do Peter, surgindo nos seus olhos as primeiras lágrimas. O seu corpo move-se lentamente em direcção à espada).

Traíste-me. E por que razão nunca me perguntaste o que sentia? Para que me criaste, se nunca quiseste saber quem era?

Talvez num desejo egoísta de crescer, presa numa crença de que, se mudasses, algo na nossa relação terminaria. Validando-te poderia perder-te, que não há melhor estratégia para ajudar alguém a mudar que dizer-lhe que está bem assim. Andaria louca em busca de uma nova personagem principal, percorreria todos os técnicos, até os da imagem e do som

- por favor, arranjem-me um novo protagonista

não tendo entendido eu, meu Pan, que apenas mudando poderias continuar a ser tu. Estas são considerações teóricas bastante difíceis de aprender, quanto mais de apreender. Nota no entanto como sempre soube da tua especial importância, querido Peter, (marejar de lágrimas por parte do Peter, o que nos dá indicação de que este conteúdo será um bom marcador para o processo de mudança. O que é o mesmo que dizer ao leitor para prestar atenção a este trecho), caso contrário nada disto teria acontecido. Não poderia dizer-to explicitamente, escancararia dessa forma a minha vulnerabilidade. Passei-te então duas mensagens fundamentalmente diferentes, dei-te importância no processo mas retirei-ta do conteúdo, e duas mensagens numa só pessoa dá um triângulo perverso, a ambiguidade é o pior maltrato, sabe disto qualquer terapeuta que se preze.

(Peter levanta-se, lentamente, colocando as pernas em posição de luta, apesar das lágrimas ainda presentes)

E aqui entre nós, vê tu bem a ironia, foi para escrever que te ocultei e por escrever que te descobri, e vem-nos de novo a ideia de como a mudança e a manutenção não existem uma sem a outra. Aparecem-me neste instante à mente algumas considerações de carácter menos teórico sobre este assunto, como esta:

- envenenou-se com o seu próprio veneno

mas ouve, Peter, desconfio que algo mais que isto se passou, caso contrário bastaria dizer-te:

- liberto-te desta dívida. Deixas neste momento de ser uma das minhas personagens, poderás antes ser quem queres

com uma voz clara mas seca, sem conteúdo emocional. Mas ao longo destes anos algo em mim foi invadindo o meu corpo de mansinho mansinho, assim como a doçura das folhas ali ao fundo a oscilar com o vento.

(A luta do Peter começou entretanto, há já algumas linhas. A personagem está agora demasiado concentrada na activação límbica e na correspondente tendência de acção de luta, motivo pelo qual não fala).

Perdoa-me, meu bem. Ofereci-te então essa espada com que te libertas e expressas e proteges, (afinal são três coelhos e não dois), conjugando-te assim a beleza da luta e a doçura das folhas. De tal modo que agora quando te olho sei que já não és um boneco, de certeza que não és.

Como sabes?

Nenhum boneco vive assim. Em mim.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Futuro-me

Amor? Gostaria de começar este texto com uma afirmação, que bem sabes como elas são necessárias para estruturar o leitor. Comecei então a incansável busca, e nota como uma questão pode ser colocada sem no entanto haver margem para dúvidas:

- Boa tarde, Sr. Quanto custa uma afirmação?

Sabes que hoje, no metro, pude por um breve momento sentir como se fosse a primeira vez que me transportassem? Desculpa, por vezes a vida real infiltra-se na ficção, diz-me ela (a vida real) que não aguenta a rotina, insurgindo-se num acto de rebeldia adolescente, ou mesmo infanto-juvenil, como os livros que líamos quando tínhamos 13 anos.

Podes voltar à história principal? Para que te sigam.

Percorri então um mundo e o outro à procura de uma afirmação parecida com as ondas do mar, daquelas que nos transportam (sublinho a ligação com o transporte do metro) até à beirinha, e nos moem e nos reviram e nos esfrangalham e nos enchem de areia, estranho como nos sentimos lavados com tanta areia presa no fato de banho. Acho que é pelo caminho, enquanto fazem carreirinha, que elas vão colocando as perguntas (são duas personagens, que a dúvida implica a divisão), e que estas vão sendo eliminadas pelo movimento das ondas. O movimento das ondas, girls, que bom que é. E surgiu-me de repente a ideia, amor

mentirosa, a ideia estava já presente no início do texto, ou quem sabe no início de tudo

concentra-te um instante comigo, a ideia de que se todas as afirmações pressupõem uma pergunta, talvez tantos anos de procura sejam antes consequência de uma qualquer afirmação futura, e não a sua causa. O que quer dizer que o nosso passado (o meu, o teu, o nosso, que um mais um igual a pelo menos três) dependerá então da forma que dermos ao futuro, e se virmos bem compreendem-se todas as perguntas que te faço, inclusivamente a primeira de todas, lá em cima. Sabendo disto tentarei eliminá-la até terminar o texto, que faltam ainda cerca de 14 futuras linhas, muito passado pode ainda ser mudado.

- a Dra pergunta se será um grande incómodo para si alterar a consulta para 5ª feira de manhã.

A vida real adolescente a insurgir-se de novo, não contei com esta imprevisibilidade. Faltam 131 palavras para o final.

- fica combinado. Poderá transmitir à Dra., no entanto, que o nosso trabalho passará a ser o de rever o futuro para alterar o passado?

E desconfio, meu bem, que esta ideia que te apresentei começa lentamente a instalar-se em mim. Porque ao longo destas linhas de hoje começo a já não me lembrar da tristeza de ontem, talvez neste momento ela até nem nunca tenha existido. Ou então é do cansaço da hora, que este texto foi difícil. Faço então uma última tentativa de alteração da forma inicial, terminando com uma questão, na esperança de que no momento em que a escreva a primeira pergunta de todas se apague por si. Se isso não acontecer, bro, desculpa. É porque o leitor considera o título a primeira afirmação de todas. Está bem?

segunda-feira, 10 de maio de 2010

The One

Menina. Tanto há para te dizer há já anos, que por vezes a emoção primordial vai sendo substituída, talvez por um conjunto de outras emoções menos avassaladoras. No entanto, há momentos em que, por razões desconhecidas, algo em nós quer porque quer voltar a um simples fim, que é o mesmo que chegar a um início. Quando vou ao médico acontece-me algo parecido, depois das duas horas de espera habituais toda a minha elaboração se desvanece:

- então de que se queixa?

- dói-me aqui.

e as seguintes intervenções são também respostas curtas neste tom monocórdico (sei que me ouves, meu bem). Todas as associações param então, e eu pergunto-me, neste instante, se a isso se deverá o facto de a minha ansiedade repentinamente se evaporar e surgir uma certa tranquilidade, mesmo com aquela dor que me atingiu o músculo e me despertou às 3 e 45 da manhã. Ou de outra forma te digo, assim desajeitadamente, que talvez tantas palavras e tantas frases e tantos parágrafos recheados de pormenores ansiosos que antes te dei assumissem uma função de auto-protecção. Que ela inventa emoções tão intensas que até nós temos de fingir que somos outros, menina minha, o que tendo em conta a nossa condição de personagens animadas dá um duplo fingimento. Triplo, na passagem da real vida animada para o papel.

Amanhã há escola. Que me queres dizer?

Escrevo-te desta vez com um propósito contrário, que será esta necessidade de finalmente nos condensar aos dois num qualquer centro nevrálgico. Se pudesse dava-te todo o meu amor numa palavra, apenas numa. Ficarias decerto convencida, dada a dificuldade da tarefa. Não haveria assim espaço nem tempo para ambiguidades, apesar de todas as nossas diferenças. Mas foi tanto tempo, girl, e eles têm a mania de nos ir enchendo a vida de palavras na esperança ingénua de um maior controlo, não sabendo que em vez disso causam simplesmente maior incerteza. Foi tanto tempo que lhe peço:

- por favor, podes levar-me ao mar?

- para que queres ir ao mar? tens é de ir à escola.

Por vezes diz-me isto a rir-se, com brandura e achando alguma graça ao que julga serem meus desejos (talvez a delicadeza do pedido não transparecesse a necessidade imperativa?), mas arrastando-me entretanto para o autocarro, e a seguir para o metro

- trocas no campo grande, onde há correspondência entre a linha amarela e a verde

-mas é que no mar…

É hora de ponta e o ambiente está confuso, menina, há muita gente a falar ao telemóvel, imagina que já vi gente com um em cada orelha. Não consigo perceber para onde vai toda aquela informação sob a forma de ondas electromagnéticas que só podem cruzar-se, são muitos milhões de pessoas à procura das palavras certas. Será impossível que o que é simples não se complexifique, é muita entropia electromagnética. Para onde vai tanta informação?! E nisto perco-me

- andas três estações, tens de ter cuidado na direcção, senão vais para trás, para odivelas

- mas é que no mar eu poderei…

Linha amarela. Depois verde. Corro, girl, e encho as minhas mãos de suor, na esperança de que este não me permita sentir esta tristeza por não ter ido num instante ao mar, que tu sabes que é aquele sítio onde todos os tempos se juntam. E onde eu sei que encontraria uma só palavra para te dar.

domingo, 2 de maio de 2010

Overloading

Alex. Escrevo com dificuldade, porque os horários são rígidos, chega aquela hora e ficamos sem luz. A vida é por vezes difícil por aqui, brother. Durante o dia a luz distrai-me, e há também as actividades. Enfim, acordamos e dizem-nos quem somos, o que é já um descanso. Nesta ala somos quase sempre Peter pans, brother, porque somos mais novos. No dia em que me mudarem para a H ficarei perdido, mas não vale a pena antecipar os acontecimentos. É curioso, imagina Peter pans presos, parece um contra-senso dado o facto do Peter voar, os humanos são peritos na criação destes paradoxos. Bro, hoje houve aula de capoeira na A, foi um tanto libertador, sobretudo porque o formador nos disse que se trata de uma dança-luta desenvolvida pelos escravos. Interessante, nota como as artes marciais têm vindo à baila (!) (exclamação inserida no meio do texto para indicar a introdução involuntária da expressão “vir à baila” após a ideia da dança, mostrando-nos um pouco do funcionamento cerebral) nos últimos tempos. E Alex, esqueci-me de começar a carta com os acontecimentos mais antigos, mas sabes como podemos começar numa determinada data e depois o processamento levar-nos mais atrás, bem lá atrás. Outro dia o Tito, sabes o meu companheiro de cela? Virou-se para mim e disse-me:

- Queres um cigarro?

E deu-me. Fumámos em silêncio, e digo-te Alex, aqueles 5 minutos foram os mais importantes dos últimos meses. Não desfazendo a tua visita, que os laços familiares serão sempre importantes, e a relação entre irmãos é a que normalmente dura mais tempo. Mas bro, com a sua fala o Tito introduziu três coisas importantes: o cigarro, que aqui dentro equivale a outros grandes prazeres no teu mundo; a iniciativa da proposta, rara, aqui dentro ou aí fora; a partilha de uns minutos de silêncio com o Tito, sem ser aquele silêncio constrangedor de quando te permitem vir comigo até ao jardim. Devo maçar-te com esta conversa do Tito, desculpa. Quando o tempo é muito para o espaço que o contém, a cabeça começa nisto outra vez, num looping, é um overload, bro. É tanta a informação que ela sabe que tem de sair por algum lado e eu rezo todos os dias que saia nos 5 minutos que nos dão de banho, porque aqui a imagem é ainda muito estereotipada, julgar-me-iam fraca. Como se a naifa que trago comigo sempre pronta não pudesse coexistir com lágrimas. Não os condeno, que com tanta condenação não poderiam mudar de vida nunca, nem os espíritos mais evoluídos. Overloading é também uma táctica de xadrez meu bro, em que a uma peça de defesa é dada uma nova tarefa que não pode completar-se sem que seja abandonada a tarefa original. São tantas tarefas e funções e peças e personagens e tácticas e estratégias, e estas últimas são duas coisas bem diferentes. Sabes o que são paradoxos, irmão? São altamente prejudiciais para o cérebro, dás uma informação para um dos lados e a oposta para o outro. É claro que poderás também considerá-los um desafio (palavra quanto a mim tão sobreutilizada no meio empresarial) permitindo-te desenvolver mais o corpo caloso, aquele que liga os dois hemisférios, e estruturas de ligação são uma mais valia neste mundo das relações. Vou terminar, que é quase de manhã e há as actividades, Alex, desculpa. Gosto tanto de te escrever, que se pudesse passava o resto da vida a fazê-lo, só para sentir menos uma condenação. Que é o mesmo que dizer o teu amor, quem não julga só poderá amar, calculo que não tenha alternativa. Troquei há pouco o género de propósito, que assim permito-me ser sem riscos de qualquer ordem. Além disso, julgo que terás mudado de morada, as cartas têm vindo devolvidas, o que faz com que eu seja simultaneamente o emissor e o receptor. E digo-te, esse tem sido o maior desafio, percebo a tua mudança de casa. Juro que percebo (tento convencê-lo, mais ainda agora, que chego à conclusão que ele sou eu). Meu bem. Meu bro.