sábado, 11 de julho de 2009

Associação livre

Bom dia Dra.

Bom dia Rosa. Conte-me, trouxe-me o trabalho de casa?

Trouxe sim.

Então diga-me. Nome.

Eva.

Onde vive.

Na Austrália.

Porquê na Austrália?

Porque imagino os cangurus.

Quais são as cores predominantes?

Verde e cor de laranja. A rapariga é ruiva.

Imagem.

Um cavalo a andar muito depressa.

Hum hum. Pensou muito, ou essa imagem veio-lhe espontaneamente?

Pensei bastante. Mas foi espontânea. Essa ideia de que a verdade é mais imediata é antiga, Dra. Complicado será aceder ao primitivo e exprimi-lo nesta nossa lógica. Não sei como hei-de dizer-lhe.

Já experimentou fazê-lo directamente?

Que quer dizer “directamente”? A partir do momento em que o exprimo deixará de ser directo. Queria que sentisse sem ter de lhe dizer. Sempre pensei que era óbvia, Dra. Gabava-me da minha transparência. Entretanto disse-me que eu era incompreensível. E compreender a minha própria incompreensão foi terrível. Tu devias ser ruiva, era o que me dizia. Nasceste para ser ruiva. Morena nunca irás ser compreendida. E bem sabe que todos temos este sonho que nos abarquem.

Porquê ruiva?

Talvez associe a cor ao fogo, e o fogo à luta. E a imagem do cavalo a correr bate certo, não? Estou pronta para uma sessão de psicanálise.Talvez seja má ideia, imagino a interpretação do cavalo a correr. Mas atenção Dra, apesar de tudo eu estava consciente. Não entendem eles que a angústia é natural, e que o facto de a afirmar me faz tranquilizar-me nela. E a luta pode ser alegre, imagina um fogo triste? A minha angústia é cor de fogo. E o cavalo do meu sonho é castanho, quase preto. Imagino que preto deva ser morte nos sonhos sonhados, afinal é uma sinestesia básica. Será esta uma angústia de morte?! Dra! Onde veio parar a associação livre! Devia chamar-se antes angústia de vida, mudava-lhe logo o significado e provavelmente deixaria de ser fonte de insónias. Mas descanse, porque a minha imagem tem verde, e cor de fogo, e ainda a Austrália, que não sei que cores terá, e cangurus. Sonhar com cangurus deve ser sinal de vitalidade, não? Sempre aos saltos…Vou terminar, Dra. Que isto da associação livre é muito cansativo, e estas cores todas confundem-me e eu hoje estou em modo controlador, preciso de alguma ordem. Pode terminar a dra? Custa-me tanta liberdade.

Daqui a duas semanas? Cá a espero, à mesma hora. Desta vez sem trabalhos de casa.

2 comentários:

Anónimo disse...

Pois a angústia é da vida, não da morte. Quem está morto não se angustia, porque a angústia vem toda do Ser e do querer ser. Quando não se é, nem se quer ser, não se sofre. Também não se tem prazer.

É como a música. Tudo é uma questão de dissonâncias. Quando a música começa tem um tom. Depois vai-se transformando (e uma modulação é quase sempre torcida, angustiada) e pode chegar longíssimo. E é sempre depois a tensão entre consonância – distensão – e dissonância –tensão. Algumas dissonâncias são boas, saborosas –como o prazer– outras são puro horror. A música acaba com o reestabelecimento do tom inicial.

Digo que a música e a vida se parecem porque a morte (a não vida) não tem tensões nem distensões, não tem angústia nem prazer, tal como o silêncio antes da música.

A Austrália é vermelha, cor de barro.

inês disse...

Que saudades, anónimo...

A Austrália é vermelha? As coisas que sabemos sem saber...:)

Beijinhos muitos!