domingo, 9 de novembro de 2008

Desencontros opacos

Esse livro não é teu.

Como?

O livro a fechar. Não é teu, acho que me interpretaste mal. Não estava a falar de ti. Vim para cá a pensar nestes equívocos. Por vezes a transparência é impossível. Quero tanto clarificar esta cabeça.

Andamos todos assim.

Nem todos, mas bastantes, sim. Esta pressão, esta tensão, esta urgência. Desculpa ter ido buscar estas palavras, só agora dei conta que são repetidas de outro contexto. Somos assim, sempre a repetir-nos, sempre a repetir-nos. Animais de hábitos. Ter consciência de alguns deles pode-nos fazer conseguir mudar.

Era bom este filme.

Era. Tantos rodeios. Pensei várias vezes antes de ser explícita, e a Dolly Bell a insinuar-se no ecrã, e as torradas com queijo, e a ternura por alguém que esteve lá, na altura certa, no momento certo. Acho que é o que procuramos todos. Já viste que a relação com os terapeutas não é senão isso? Alguém preocupado connosco durante uma hora. Uma reprodução do que procuramos. Andava bem sozinha, Raul. E juro-te que esta aproximação não foi deliberada ou estratégica. Dizem-me em sessão que mudei tanto, como conseguiu tomar essa decisão em prol de um longo prazo mais adaptado, e eu que sim, que contente que estou com o facto deste hábito, ou rotina, ou padrão ter sido cortado. Pena que tenha sido contigo, Raul. E depois não é que é o Raul que me telefona e se preocupa? Um mistério. E tudo ficou repentinamente mais tranquilo nessa nossa relação, nesse dia, nessa altura. Um acaso exterior, uma catástrofe, uma desgraça. Acho que me mudou o comportamento com ele, e ele comigo, e cá está o famoso “nós” das aulas do último ano. E a verdade é que estava a precisar que me dessem uma torrada com queijo. No livro que tenho a fechar esqueceram-se de me dar torradas. Ou não podiam, ou eu não as soube receber, não quero vitimizar-me. Sim, estou a dirigir-me a ti.

A mim?

Não, isto são devaneios meus, bem sabes que as personagens podem ir mudando. Melhor, elas são quase sempre várias. O que acontece é que algumas vezes isso se torna mais explícito do que outras. Estranho é que quando o conteúdo é mais sentido, e, parece-me até, mais real, normalmente perde-se a lógica. Não sejas narcísico, este texto não é sobre ti.

Narcísica és tu, que te escreves a achar que alguém te sente. Que sente contigo. Já devias saber que isso é impossível.

Pois é. O que me perturbou verdadeiramente estes dias foi a constatação, mais uma vez, dessa solidão. E de como o mundo está do avesso. E de como nos podemos perder, todos, no meio desse avesso. E de como se podem formar angústias, ou vazios, em espaços aparentemente tão cheios, tão cheios tão cheios que começam a perder o sentido. E ele até é simples. Gosto muito de ti. Desculpa ter-me esquecido tantas vezes de o dizer.

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