segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O movimento do comboio, que bom que é

Estou sim?

Boa tarde. Aaaah, eu queria falar com a Vera.

É a própria.

Vera…

Quem fala?

Tenho saudades tuas…

……..

Vera…desculpa. Segui outro caminho que não o que combinámos. Mas gosto muito de ti na mesma. Tinha que experimentar ir ao cinema sozinho. E fui para Coimbra outro dia, só para sentir o movimento do comboio, que bom que é. Por favor não desligues, estive muito tempo para conseguir ligar. Ontem esteve lua cheia e lembrei-me de me dizeres como não gostavas dessas noites. De repente senti as tuas mãos a fazer-me caracóis, como é possível ficarem essas memórias. Começam a misturar-se todas. Os vários sítios, os vários gestos, as várias pessoas. Não eras tu que me fazias caracóis, afinal. Já tanto me faz que respondas ou fiques em silêncio, que me leias ou não, que gostes de mim ou não. Não podia deixar que ganhasses esse poder, entendes? Por mais que compreendesse. E há coisas que não vou compreender nunca, acho eu. Mas tinha de perceber se são as histórias que nos levam a agir ou a acção que constrói a história. Bem sabes que gosto de trabalhar sozinho, de pensar sozinho. E isto da história é importante para mim. Levo tempo a encaixar que tudo será diferente do que imaginei. Não sei o que quero, Vera. Ando aqui sem saber quem sou ou o que quero fazer da vida. Não quero ninguém agora, deixem-me, larguem-me. Mas não me deixem, nem me larguem. Sou forte Vera, não penses o contrário. Muito mais forte do que tu. Dá a volta, dá a volta. Vamos aprendendo a respeitar-nos, independentemente do que sentimos. Porque sentir que nos desrespeitámos é do pior que há. Parecias desmiolada, mas afinal tens tanto miolo que é difícil chegar até ti. Não quero de forma nenhuma baralhar-te ou confundir-te. Falo assim mas sabes que no fundo preciso das coisas explícitas. Ainda que sem palavras, mas fiquei demasiado frágil ao não dito, ao dissimulado, às tensões por resolver. És perita nisso. Precisei de sentir apenas, tenta entender. Afinal é disso que falo agora. Sem ti sempre a dizer-me que não, que não, que tenho de virar os copos para baixo para não apanharem pó. Queria apanhar pó. Digamos que tinha de controlar o auto-controlo, senão tudo começava a perder sabor. Julgo que é esse o problema, tenho de estabelecer bem em que é que me deixo ser touro ou não. Como se houvesse uma terceira personagem que ditasse o que é que tem de ser pensado e o que é que não. Resolvi começar com pequenos prazeres, como o de sentir o movimento do comboio. Isto da condução e do movimento deve ter um simbolismo qualquer. E fui-me habituando a coisas simples. Já não quero outra coisa. Não sei se é possível, Vera. Apaixonei-me por qualquer coisa que ainda não sei o que é. Desculpa.

2 comentários:

Anónimo disse...

'Levo tempo a encaixar que tudo será diferente do que imaginei', e no entanto é-o tantas vezes, o que não significa que seja pior mas talvez signifique que é mais difícil de compreender. Até a pessoa que somos pode ser diferente do que imaginámos, mudamos tantas vezes. E as relações... esse emaranhado de sentimentos, muitas vezes confusos... como diz o texto queremos que nos deixem mas... não queremos!... Às vezes pergunto-me se será tudo assim tão linear como nos fazem crer e chego sempre à mesma resposta: não! Pelo menos para mim, pelo menos agora...

Inês

Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva disse...

Texto muito dramático e quão verdadeiro!

"Como se houvesse uma terceira personagem que ditasse o que é que tem de ser pensado e o que é que não."

Pois, é essa mesmo a maior dificuldade. E essa personagem temos de ser nós próprios, o que é difícil e, mesmo sendo possível, nos isola no nosso próprio eu, de onde não conseguimos sair para os outros porque os outros só interagem com o pensado e o dito, e não com a 3ª personagem.