Tinha fugido numa ida ao pão e
tinha voltado rápido, era tarde e queria aquecer-me, não me lembro bem. Foi num
dia certo, numa hora certa (certas são as horas, verdes são os campos) que
devia ser de manhã porque eu estava ainda cheia de frio da ausência de casa. Não
me lembro do poema não me lembro da professora não me lembro de quem tinha ao
lado não me lembro da hora,
É tarde já1
apenas que tinha frio quando
estas palavras se me entranharam, e não adianta dizeres-me para vestir mais
roupa ou que ando mal vestida porque é de outra ausência que se trata. Na sala
de aula as mesas tinham tampos cinzentos que estavam riscados e onde por vezes
se encontravam, por baixo, pastilhas mastigadas. Um dia,
aquela hora certa, aquele lugar2
estava distraída a fazer desenhos
com a caneta fechada nas calças de fato de treino porque havia ginástica, e
afinal a caneta não tinha tampa e eu fiquei com as calças cheias de corações
mal feitos, talvez porque não estava a olhar para o que estava a fazer, não me
lembro. Apenas que fiquei perplexa a olhar para as calças desenhadas a pensar
se sairia se lavasse, numa vaga esperança que os corações ficassem entranhados para
sempre na memória
às vezes se te lembras2
e ficaram. E não adianta
dizeres-me para vestir mais atenção ou que ando distraída e perco tudo, porque
é de outra ausência que se trata. Há palavras que nos ficam presas na pele e
que não saem por mais que a gente tire a roupa toda, porque se transformaram em
silêncios de que agora não me lembro, que são os últimos a ir-se embora. Por
vezes passo horas a ouvir poesia sem perceber nada dos poemas, rigorosamente
nada. Ouço-os tantas vezes que as palavras se entranham na minha memória/
pele, como quando estudava piano e as teclas começavam a fazer parte dos meus
dedos, ou talvez como quando a tua memória/o teu sorriso começou a fazer
parte do meu.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso3
Eu passo horas a fazer títulos de
coisas sem que, pelo menos aparentemente, algum dia venham a ter palavras lá
dentro. Não me lembro da cara não me lembro do dia não me lembro da hora, apenas
que me disse que teria frio. Despiu-se/despediu-se rapidamente para poder olhar
melhor para os corações que lhe tinha escrito numa hora certa, naquele lugar.
Encontrei-a assim, nua de palavras e cheia de silêncios. Acho que são os
últimos a ir-se embora mas não sei bem, não me lembro, porque
É tarde já, e ainda é cedo.1
1 Fernando Pessoa
2 Ruy Belo
3 Eugénio de Andrade
4 comentários:
Este texto está tão bem feito e é tão bonito.
:) obrigada anónimo
Voltei a ler-te. Muito bonito.
Ainda bem que gostaste, e que disseste. é bom saber :)
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