sábado, 16 de janeiro de 2010

A razão do cão


E o que acontecia no seu sonho?

- Então querida, uma questão não é uma boa forma de começar uma narrativa. Terás antes de definir o contexto, para que possas estabelecer uma ligação com o espectador.

- A estrutura pode estar a mudar. Temos de ser flexíveis neste mundo em transformação.

Havia dois gémeos, os dois dentro de uma bolha de sabão. Oscilo, no próprio sonho, entre a observação desta imagem e a participação activa, em que a visão se torna turva e o mundo indefinido. Um sonho dentro do sonho, a minha bolha de sabão. Alternávamos os dois entre chorar e rir, puramente cúmplices em algo essencial.

A que atribui a imagem dos gémeos?

Talvez à necessidade que ele seja eu. Estarei a ser egoísta? Porque na realidade apenas te amo porque nesses breves momentos sorris e te comoves, e porque os dois atribuímos a forma de cão àquela nuvem (aquela amor, não vês…?), crendo eu assim que os teus circuitos neuronais são exactamente os mesmos que os meus. Pergunto-me para que teremos nós desenvolvido esta capacidade de acharmos que acedemos aos mundos uns dos outros.

Talvez para cooperarmos. E terá, ao longo desse caminho, havido um processo de diferenciação do self. Daí a constatação de impossibilidade de comunhão com o outro.

- Acho complicado esta mistura de linguagens. Terás de decidir se te diriges a determinada população alvo, como o universo dos psis, ou a um qualquer outro fragmento da população. Tens de encontrar um nicho de mercado. São as leis do marketing.

E terá valido a pena a criação desta fonte de angústia, quando finalmente entendo que em vez de um cão vês antes um qualquer outro bicho naquela nuvem? Ou talvez apenas uma nuvem? Quer que acredite que nos iludimos os dois pensando que éramos um apenas para cooperarmos?! Confesso-me, odeio-te por vezes (volto a falar contigo. Deus me livre de vir a odiar a Dra. Margarida). É que vê, é tão intenso este meu desejo que notes que a vida parece estar presente em toda a matéria, até no Peter Pan, que é matéria imaginada. Insisto em manter a confiança de que os dois poderemos ser simultaneamente diferentes e iguais (máxima que já constituiu um slogan, o marketing anda lentamente a entrar pela minha vida, embora ainda com algum pudor) e repara como o tema da identidade se cruza com o do amor. E por fim confesso também, querido, que durante o caminho para casa, agora à saída do curso, me estampei com o carro para não atropelar um cão. Vinha louco o cão, coitado. Venho louco de amor!, ladrava-me com a sua voz rouca, justificando-se. Perdoei-o, claro, afinal foi só um farol que se partiu, e o amor pareceu-me uma boa razão para a sua loucura. Partiu-se também aquela esperança de que me atendesses e que me descansasses, que afinal era só um farol, que importância tinha. E partiu também a nuvem, com o cão, mas isso eu não lhe disse. Era demasiado para um cão só.

1 comentário:

Anónimo disse...

Por aqui, a população não psi continua a seguir religiosamente este magnífico blog, sempre munida, é claro, de uma janela Wikipédia para ir colmatando eventuais lacunas de conhecimento(isto, desde aquela história da amígdala, que saltitou da garganta para o hemisfério cerebral).
Resulta perfeitamente! :)
As emoções, essas são universais... como a música.
Beijinhos!