quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Água



João. Tive medo que as imagens e as palavras nunca mais me surgissem, e que de certa forma algo mais do que o ano terminasse. Que afinal é para isso que os anos servem, para serem terminados, esquecendo-se por vezes o mundo que o velho terá de continuar em nós para que nos sintamos os mesmos. Enfiei-me então naquele meu sítio e deixei-me ouvir o silêncio da água a correr, constatando que ela era a mesma, a água. Os gerúndios dão-me uma certa sensação de continuidade. A água é constituída apenas por dois elementos diferentes. E a verdade é que os símbolos entram em nós sem nos darmos conta, porque esta sensação de voltar a mim enquanto a água me bate nas costas não se deverá às suas propriedades químicas. A seguir vim escrever-te, não sem antes colocar as malas à porta. Estamos de partida, apesar de sobrarem perguntas. Gostava tanto de matar as perguntas que restam, e fazer durar aqueles momentos de certeza. Será possível que também eles sejam ilusão minha? Pergunto-me (que prazer masoquista este) como terei chegado até eles, e tento repetir o processo. Porque Dra., teve de haver um certo despojamento inicial.

Esse início não é controlável. Terá de esperar que aconteça.

Para poder olhar o que restava de mim. Atenção, não existe aqui qualquer laivo de vitimização, apesar da palavra “restava”. Foi apenas o significado que atribuí àquele período a que só tu tiveste real acesso. Enfim, isto do real é discutível, e talvez esta minha sensação do teu acesso ao meu real tenha a ver com o facto de não existires.

A forma e o conteúdo não batem certo, tornas-te ambivalente. Se queres dar a ideia de vazio essencial terias de falar pouco.

Senti-o, mas que queres, será necessário voltar atrás na forma para que surja algo novo. Tinha de fazê-lo de alguma maneira, e apresentar-to assim, afirmativamente. A seguir cheguei então àquele ponto em que sentes que te sentes, e olha bem a ironia, quando finalmente julgo que serei algo de parecido comigo, concluo que nunca poderemos ser os dois. Engano-te permanentemente, João, é inaceitável este meu comportamento. Tive então uma ideia mirabolante, que foi a de te matar para que pudesses voltar para mim, que a saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento, diz uma canção que tenho no carro. Imaginei as várias formas possíveis de o fazer. Quererei impressionar-te com a minha franqueza? Dar-te um tiro seria o melhor para ti, acabavas sem sofrimento, mas faltava-me o gerúndio. Tinha de te matar matando-te, não poderias passar directamente do estado sólido ao gasoso. E então, já mesmo no fim do texto, fiz a ligação com a minha água inicial, primordial. Serve esta carta para de uma forma tímida, apesar de franca, perguntar-te se quererás, porventura, um dia destes, sem programar nada que estas coisas não surgem quando as procuramos, pegar nas malas que pus ali à porta e ir andando comigo, ir ando comigo, ir andando comigo. Em direcção ao mar.

5 comentários:

Anónimo disse...

E teus textos são um contínuo gerúndio de beleza e sensibilidade, que fazem sentir, deixam saudade e se tornam num pedaço de quem lê.
Beijinhos!

inês disse...

Obrigada :)

Beijinhos!

Anónimo disse...

O texto fala de mar, ir andando para o mar... Por este e outros motivos, que não irei agora enumerar lembrei-me de pôr o Bolero de Ravel como banda sonora e pareceu-me bastante interessante o efeito (talvez porque goste da música).

Beijinhos ***
Inês

melro azul disse...

oh pedaço de mim, oh metade adorada de mim...
choro copiosamente a ouvir isto, é demasiado melancolico, so de vez em quando é que pode ser.
quem dera ser pequena outra vez para caber inteira na banheira. agora que vejo como é, lembro-me da sensação, ficou escrito no corpo.
bjs

IFA disse...

Inês,

Obrigada pela partilha :)

Melro,

eu acho que ainda cabes na banheira...que apesar de mãe de vez em quando és passarinho pequenino...;)

Beijinhos