terça-feira, 14 de junho de 2011

O gato que tinha memória de elefante

A Ísis tem o fundo branco e manchas pretas e castanhas e os olhos cor de avelã. A Ísis não é como o Cheshire porque o sorriso dela não fica pendurado, na verdade ela nunca sorri. No início eu desejava muito que ela viesse dormir para a minha cama e que andasse comigo para todo o lado. Acho que nessa altura eu desejava que ela fosse um cão. Entretanto, a par de constatar que nem sempre se enroscava em mim durante a noite, fui começando a apreciar a beleza dos seus movimentos flexíveis, por contraposição à rigidez das articulações dos cães. De manhã, antes de sair para ir trabalhar, guardo cinco minutos para ficar a observá-la, e gosto especialmente de vê-la a lamber-se depois de comer. Por vezes não aguento e faço-lhe festas e tenho de cerrar os dentes para não a apertar, porque os gatos não gostam de ser apertados. A Ísis pede-me muitas vezes que a deixe sair

- Posso?

mas eu nunca deixei porque tenho medo que ela fuja. A Ísis nasceu na rua e eu imagino que ela tenha decorado a sensação do vento a passar-lhe pela pele cheia de pêlo. O vento a passar por nós é algo que nunca se esquece e é por saber disso que eu oscilo entre permitir-lhe concretizar um desejo e protegê-la. Eu devo ter muito medo de me esquecer e deve ser por isso que tenho tão boa memória. Nunca consegui decorar os reis e as rainhas de Portugal nem as dinastias nem a localização geográfica dos países, mas do vento ou da tua pele a passar por mim eu não me esqueço

- Posso?

talvez por estas memórias nascerem no meu corpo sem intermédio das palavras. O corpo da Ísis é bastante pequeno mas apesar disso ela deve ter muitas memórias, porque eu aprendi que numa única célula cabem ilimitadas histórias, mesmo que sejam contraditórias. Eu gosto muito de escrever histórias com diferentes personagens e se vires bem muitas delas têm os reis e as rainhas que eu não consegui decorar. Ou consegui, não tenho outra explicação para tantas personagens reais. Se calhar ficaram inscritas na minha pele, que afinal é o que nos une e também o que nos separa

- Posso?

a pele. Às vezes eu dou à Ísis palavras além de festas, porque eu sei há algumas que nos ficam gravadas no corpo mesmo quando não as entendemos. Eu tenho a certeza que a Ísis tem saudades do vento e da tua pele a passar por ela

- Posso?

e que por isso se distrai intencionalmente a caçar melgas. Eu gostava muito de lhe matar as saudades e na falta de vocabulário vou ao dicionário e decoro a primeira palavra que me aparece

- Desorelhar.

e fascina-me constatar que me calha quase sempre uma palavra que eu não conheço. Dizem que os gatos têm fraca memória mas eu julgo que deve ser mentira, porque senão não seriam tão cheios de si. A Ísis tem o fundo branco e manchas pretas e castanhas e a pele dela está cheia de pêlos que caem na primavera, pele pêlos primavera. A Ísis é tão bonita, que se algum dia eu deixar de lhe fazer festas vai ser porque tive medo de não conseguir cerrar os dentes e não a apertar. No início eu desejava muito que ela viesse dormir para a minha cama e que andasse comigo para todo o lado. Acho que nessa altura eu desejava que ela fosse um cão. A Ísis pede-me muitas vezes para sair e apesar de ela ser pequena tenho a certeza que tem muitas histórias contidas num só corpo por onde passou o vento e a tua pele

- Posso?

Como eu.

4 comentários:

Anónimo disse...

Só para dizer que gostei muito. Não há nada mais a acrescentar.

B77 disse...

Que saudades!
Que bom!
E que sorte tem a Ísis! :)
Beijinhos

Anónimo 5 disse...

A pele... tantas histórias que guarda...!

=)

IFA disse...

Um sorriso franco ;) para todos. Obrigada :)))