O mês tem sido bom. Levanto-me cedo para ir trabalhar. Pelo caminho, ouço música e ponho o volume no 15, e conduzo bem depressa. Esta é uma das vantagens, quando o mundo parece parar, temos a ilusão de finalmente podermos andar. Nota que até a velocidade é relativa, não sendo possível distinguir dois referenciais inerciais. Silêncio agora, concentração, ouço-os a chegar.
Posso mandar entrar, Dra?
João. Há momentos em que tenho a certeza que andaremos à mesma velocidade, ou que estamos os dois parados.
Manuel, Dra, o meu nome é Manuel.
Porque não nos distingo, e estou segura de que nem um observador exterior a este sistema o poderia fazer.
A Dra. o diz e é verdade, sem desconsiderá-la mas não se distingue mesmo, cá dentro ou lá fora vai dar tudo ao mesmo. Apesar do exterior me assustar ainda, de certa forma estes muros deram-me algo que nunca obtive antes.
Revelo-te aqui, na presença de todos e de ninguém (e esse é o melhor de dois mundos, quando o paradoxo se desfaz), que ontem me passaste os teus dedos pela minha cara, e eu soube que eram teus porque eu tenho um detector das tuas impressões digitais. Ele apita incessantemente nesse momento, imprimindo-me o som em todas as células do meu corpo, reactivando a ligação entre esse estranho neurotransmissor e os seus receptores. Tudo isto na esperança de que não me esqueça de que existes também na matéria.
E eu não me esqueço Dra., não esqueço, há instantes em que a ficha nos cai e parece que toda a nossa vida nos passa diante dos olhos. Aqueles momentos em que sabemos que temos de ser nós.
Eu permaneço em silêncio nos segundos subsequentes, antes de começar de novo a interpretar a minha imagem agora reflectida no espelho da casa de banho desta casa deste bairro desta cidade deste país deste planeta deste mundo. Porque apenas no silêncio posso realmente tocar-te, ainda que com as minhas palavras.
Era como se não fosse eu, entende Dra? Olhei-me ao espelho e pensei: não sou o mesmo de antes. Talvez seja eu agora.
Retiro então o excesso de água, começando lentamente a acelerar, são 7.45 da manhã e apesar do vazio de Agosto há ainda uma distância a percorrer. 5km/hora até ao quarto, chatice ter de levar calças com este calor. 10km/hora enquanto constato que já quase não tenho café. 15Km/hora, todos os dias a cena da gata a esconder-se no exacto momento em que penso ir fechá-la. 20Km/hora e começo já a sentir saudades, que saudades João
Manuel. Acho que esse silêncio vem de Deus, Dra.
30 Km/hora e desço as escadas a correr e 50Km/hora a velocidade de comer três bolachas e 60Km/hora para rodar a chave e 90Km/hora é um absurdo na cidade assim mesmo sem vírgulas ou qualquer tipo de sinais. E os nossos referenciais são agora não inerciais, olho distraidamente pela janela e consigo já avistar-te lá fora, se não fosse o volume no 15 poderia até dizer-lhes a que velocidade estás. Que dizia, Manuel? Sobre o silêncio.
João, Dra. Manuel era o anterior, o meu companheiro de cela.
Posso mandar entrar, Dra?
João. Há momentos em que tenho a certeza que andaremos à mesma velocidade, ou que estamos os dois parados.
Manuel, Dra, o meu nome é Manuel.
Porque não nos distingo, e estou segura de que nem um observador exterior a este sistema o poderia fazer.
A Dra. o diz e é verdade, sem desconsiderá-la mas não se distingue mesmo, cá dentro ou lá fora vai dar tudo ao mesmo. Apesar do exterior me assustar ainda, de certa forma estes muros deram-me algo que nunca obtive antes.
Revelo-te aqui, na presença de todos e de ninguém (e esse é o melhor de dois mundos, quando o paradoxo se desfaz), que ontem me passaste os teus dedos pela minha cara, e eu soube que eram teus porque eu tenho um detector das tuas impressões digitais. Ele apita incessantemente nesse momento, imprimindo-me o som em todas as células do meu corpo, reactivando a ligação entre esse estranho neurotransmissor e os seus receptores. Tudo isto na esperança de que não me esqueça de que existes também na matéria.
E eu não me esqueço Dra., não esqueço, há instantes em que a ficha nos cai e parece que toda a nossa vida nos passa diante dos olhos. Aqueles momentos em que sabemos que temos de ser nós.
Eu permaneço em silêncio nos segundos subsequentes, antes de começar de novo a interpretar a minha imagem agora reflectida no espelho da casa de banho desta casa deste bairro desta cidade deste país deste planeta deste mundo. Porque apenas no silêncio posso realmente tocar-te, ainda que com as minhas palavras.
Era como se não fosse eu, entende Dra? Olhei-me ao espelho e pensei: não sou o mesmo de antes. Talvez seja eu agora.
Retiro então o excesso de água, começando lentamente a acelerar, são 7.45 da manhã e apesar do vazio de Agosto há ainda uma distância a percorrer. 5km/hora até ao quarto, chatice ter de levar calças com este calor. 10km/hora enquanto constato que já quase não tenho café. 15Km/hora, todos os dias a cena da gata a esconder-se no exacto momento em que penso ir fechá-la. 20Km/hora e começo já a sentir saudades, que saudades João
Manuel. Acho que esse silêncio vem de Deus, Dra.
30 Km/hora e desço as escadas a correr e 50Km/hora a velocidade de comer três bolachas e 60Km/hora para rodar a chave e 90Km/hora é um absurdo na cidade assim mesmo sem vírgulas ou qualquer tipo de sinais. E os nossos referenciais são agora não inerciais, olho distraidamente pela janela e consigo já avistar-te lá fora, se não fosse o volume no 15 poderia até dizer-lhes a que velocidade estás. Que dizia, Manuel? Sobre o silêncio.
João, Dra. Manuel era o anterior, o meu companheiro de cela.
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