segunda-feira, 29 de março de 2010

1´44



Chove. Vamos aproveitar para filmar uma das cenas à chuva, sim? Estão por exemplo os dois ali, naquele banco. A conversa inicia-se calma. Consegues sentir o texto?

Não entendo o contexto. Preciso de mais elementos para improvisar.

Ora, improvisas no vazio, e sempre sentes que és mais tu. Digo-te apenas que se trata de um reencontro, mas nenhum dos dois o sabe. Além disso preocupa-me mais ela, este é o seu exercício. Eva, estás preparada? Podemos começar? Já sabes, decides ao minuto e quarenta e quatro, que é quando a música começa a acelerar e começamos a ouvir a mão esquerda a fazer aqueles acordes que lhe imprimem tensão. Até lá tens de tentar entender o que se passa. Acção.

- Eva…

- Peço-te silêncio. Desculpa ocupar-te assim um minuto e quarenta e quatro de tamanha intensidade, mas precisei de saber quem eras afinal. Vou-te tocar ao de leve nas costas relaxadas, pode ser? Conhecemo-nos?

- Não tens tempo para ironias introdutórias, Eva. O teu filme já começou a passar, eles carregam no play e vão lendo ao mesmo tempo. Deixa-o correr, relaxa também tu essas costas, queres uma massagem? Porque estás tão tensa, Eva? Que se passa?

- O ponto, João, eles não me dão ponto no exercício final. E todas estas cenas, e a pressão da música, tudo é demasiado rápido, e eu disse já várias vezes por aqui que sou lenta. Não me obriguem a seguir em frente, que todos os beijos demoram a passar na tela, e isto é só um exercício, meu deus. E entretanto a chuva cai-nos em cima, e os meus cabelos ficam assim, em cachos. E eu sou eu mas não sou, que a imagem que tenho gravada é de outros ambientes onde a chuva não cai. Conhecemo-nos?

1 minuto!

- E vem-me um pensamento perturbador: se o meu corpo se juntar ao teu voltarei a ser porventura a de antes? Fará tudo isto parte deste mesmo filme que entretanto corre na tela? Afinal a minha pergunta é essa, desculpa a demora, as perguntas são o mais difícil de encontrar.

30 segundos. O filme continua a correr. Atenta à música, Eva, está atenta à mão esquerda.

- Atenta, atenta. A minha mão esquerda faz assim como eles, tantantantantantantantan, oito tans, e afinal esse culminar não é a decisão, esse primeiro culminar é a pergunta: poderei juntar este nosso beijo ao filme e não ser a de antes? Poderei manter o conteúdo (que um beijo será sempre um beijo) e mudar-me a forma? Neste nosso futuro beijo ambos temos cachos no cabelo, não introduzirão eles a diferença? A ansiedade será causada também pela possibilidade, que uma cena que integra os dois tempos, passado e presente, não se encontra todos os dias. Nota, ao minuto e cinquenta e seis ele sorri, e eu julgo que não será por ter encontrado ainda a resposta, mas sim a pergunta. E exactamente aos dois minutos e doze segundos, aí sim dá-se um novo culminar, com a entrada dos violinos lá mais para cima. Estavam a roubar-me 20 segundos, eu sabia que me apressavam. E se virem bem, apenas nesta altura as lágrimas são já bem notórias, e eu julgo que será porque de alguma forma a personagem principal integrou todos aqueles beijos, e são muitos, João, que ele viu muito cinema ao longo da vida. E aos dois minutos e vinte e nove, quando a estrutura da narrativa está já na síntese ou na coda, aí sim eu decido, cruzando como ele os braços por trás das costas como quem chega finalmente a casa e se refastela. Nesse momento tocas-me, ao de leve mas com intensidade, nas minhas costas já húmidas e ainda tensas, pode ser? E nesse momento eu digo-te: João…podemos repetir a cena, já com menos graus de liberdade e improviso? E tu respondes:

- Possivelmente.



sexta-feira, 19 de março de 2010

O gato humano

Meu bem, estive a pensar em tudo o que me disseste. Inclusivamente quando estava hoje na massagista, que me disse que todos estes músculos estavam fora do lugar, não havia eu de sentir-me estranha. Nem eu nem o outro, já dizia o poeta. Eu disse-lhe que tudo isso era natural e confessei-lhe, em tom de brincadeira para que não se assustasse com a dura realidade, que na verdade eu era um gato mascarado de humano.

E que te disse ela?

A sra. massagista permaneceu uns minutos em silêncio, mas sempre a mexer-me aqui na cervical, que foi uma forma de continuar a comunicação. Fez bem, poderia ter-se transformado num momento constrangedor para ambas. Eu insisti na fantasia, porque precisava urgentemente de uma qualquer explicação para esta estranheza: verdade! dra sra massagista, eu sou um gato à procura do seu corpo! E pumbas, mais uma pressão aqui, na C2. Inverti então a marcha, há que respeitar o tempo de transformação de cada um.

Devia fazer reeducação postural, e muito trabalho de corpo.

E eu suspeitei então que parte dela gostaria de explorar a cena do gato, que afinal não é todos os dias que presenciamos este tipo de loucura, nua e crua. É interessante meu bem, porque os gatos têm aquela flexibilidade que me permitiria seguir aquele sonho de que falávamos outro dia, na formação. E se de repente tudo isso fosse real? Afasto rapidamente esse pensamento, não se estragam sonhos assim, tornando-os possibilidades neste nosso mundo. Imagina tu que todo o nosso inconsciente, colectivo e individual, era descoberto. Que nos restaria? De modo que eu teimo em manter algumas profundezas, fingindo até por vezes que não as vejo quando insistem em aceder à superfície. E além disso fixar a ficção/os conteúdos espongiformes (riscar o que não interessa) dá trabalho, meu bem, dá-me por favor um descanso, dá-lhe tu hoje banho que eu agora só quero sentir as mãos da dra sra massagista.

Estão atrofiados e libertam toxinas, entende? A massagem dá um certo alívio mas são muitos anos de maus hábitos posturais.

São muitos são, meu bem. Embora vendo com outros olhos, se construirmos a realidade numa escala mais universal, tendo em conta por exemplo o tempo em anos luz daqui ao sol, tantos anos são praticamente equivalentes a zero, que é como quem diz que afinal é como se tudo começasse agora, neste instante. É a sério e é agora. Melhor, numa escala universal eu posso começar do zero mas com 32 anos de maus hábitos posturais, e este é um sonho tão estonteante que só poderá ficar entre nós, minha sra dra massagista. Toca a calar o sonho, que bem sabes basta mudar o contexto para que as coisas adquiram nova função, e afinal esta que inventámos para o sonho que é a de comandar a vida é bem bonita, não? E se ele se tornasse realidade eu teria de decidir. E eu sei lá se quero recomeçar gato ou humano.

domingo, 14 de março de 2010

Segredo (2)

Eu sabia que eles guardavam segredos...