segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Carnaval

Cara Dra. Faz frio, estão graus negativos. Tenho saudades do sol de Lisboa. Mas o chão aqui é aquecido. Entrei há pouco numa ourivesaria ali do quarteirão, e fiquei algum tempo a apreciar os anéis. Nunca lhe contei Dra, mas quando era pequena ficava extasiada a contemplar o brilho do ouro. Julgo que a palavra contemplar se aplicará bem, porque me sentava naqueles bancos altos e passava lá tanto tempo que me perdia concentradamente, e as minhas mãos nem ficavam suadas. Noutros raros momentos o mesmo terá acontecido, como quando passava com os braços nas almofadas de seda da minha avó, e hoje em dia quando inesperadamente adormeço com o sol a bater na janela da sala, ou quando por um acaso noto como a luz incide com um ângulo perfeito sobre uma folha. Pensei agora em colocá-la a perguntar-me o que será comum a todas estas situações, e dessa forma reproduzir mais fielmente as interrogações internas.

E porque não o faz?

Para lhe tirar poder à personagem, dra. Escrevo-lhe então deste sítio distante, o que me aumenta mais o controlo. Sabe como este tema é premente nos dias de hoje, e quando exploramos bem surge tantas vezes associado ao tema da responsabilidade. Queria dizer-lhe que no outro dia, no caminho do Loures shopping para casa, adormeci no carro da Ana. Tenho a certeza que está agora com um sorriso, eu dormia mas sorria também, não é sempre que nos deixamos assim embalar. Já lhe aconteceu não entender nada do que lhe dizem e ser invadida por uma tranquilidade inigualável? Segredo-lhe que por vezes, na calada da noite, ponho-me a ler livros em alemão, apenas para me ouvir a emitir aqueles sons. É uma calma que nenhuma compreensão me poderá dar. Gostaria de experimentar umas consultas numa língua totalmente incompreensível, e talvez assim sentisse que me abarca, prolongando um pouco aquela minha ilusão acriançada de ser toda durante 50 minutos, e não apenas uma das minhas personagens. Criar-lhe-ei também uma transparência a si, o que fará com que provisoriamente se sinta impedida de me analisar. Todo e qualquer passado, presente ou futuro que queiramos co-construir nesse espaço comum será com base na incompreensão. Afinal parece-me que a transparência pode estar tão perto do caos. Serei frontal agora, ganho balanço na cadeira para lhe conseguir dizer que, apesar de eu entender que é carnaval, a sensação súbita de sermos apenas dois meros seres mascarados causou-me uma dor aqui, dra, nesta zona aqui. Eram cinco da tarde, a única hora do meu longo dia em que havia uma maior probabilidade de partilhar transparências. Partilhas comigo a tua transparência? Espera, só mais 5 minutos e já te dou, estou quase a passar de nível. E zás! Oh inclemência! Oh martírio! Estará porventura periclitante a saúde desse nobre e querido menino que eu ajudei a criar?! Na sua análise colocou-nos personagens, dra, uma traição à minha exposição, o que pode constituir um dano moral considerável, apesar de sair da objectividade do direito penal. Convirás que tamanha traição criará grande dor (perdoa-me a proximidade, a emotividade da passagem fez-me tratar-te por tu), ainda que estejamos já todos certos, através do princípio da realidade, que mascarados andamos sempre, que o carnaval não são só dois dias. Vou hoje tirar o domingo para viver um pouco no princípio da irrealidade, que a informação é muita e o mundo anda demasiado espartilhado. Espartilhaste-me, esquartejaste-me, fragmentaste-me, para utilizar uma linguagem pós-moderna. Pergunto-te, pergunto-me (que não fujo às responsabilidades) onde foram parar os Peters e os charlies e as blondinas e os reis e as rainhas e os capuchinhos e as belas e os monstros e as wendys e os príncipes e os sapos e os aladinos e todos os animais falantes e as brancas e os anões e as pocahontas, que ainda não apareceram nos textos mas há espaço para todas as princesas. No fundo da minha transparência queria dizer-lhe que julgo que o que há de comum nas situações que lhe expus inicialmente será o brilho ou equivalente sinestésico, como a sensação da seda na pele. Apesar de ainda não saber bem por que razão o brilho me dá a segurança de que preciso para me deixar adormecer. E depois desta minha análise peço-lhe que me devolva as personagens. Por favor. Devolva-me.

2 comentários:

B77 disse...

Fizeste-me lembrar o conforto que sentia, em criança, ao adormecer ouvindo as vozes de pais e tios ao longe, na cozinha. A felicidade suprema de sentir que tudo era perfeito e seguro.
Bjos.

inês disse...

:) Fico contente por te fazer lembrar. Por momentos tudo é mesmo perfeito e seguro. Beijinho grande.