domingo, 28 de fevereiro de 2010

Segredo

Começo assim, que além do tempo escassear, a escrita quer-se científica, directa, sem rodeios. Ando a descobrir que tudo pode ser simultaneamente bom e mau, bonito e feio, e mais um ou outro par de antónimos. Como se a vida começasse a fazer sentido na falta de sentido que tem. Fui então ao baú das minhas personagens e resolvi que talvez tu, querida Vera, fosses a mais apropriada para eu reinventar neste curto espaço temporal que disponho para te falar, no meio dos outros tantos papéis que nos vemos obrigados a desempenhar.

Quem fala?

Daqui satélite. Esta piada é privada, e colocando-a aqui crio rapidamente uma pequena aliança com quem a reconhece. Ao escrever-te existes sem existires, e isso é maravilhoso, porque me dá segurança constringindo-me as possibilidades da minha própria existência (que afinal não dizem que são só metade nossas, as palavras?), deixando-me no entanto uma liberdade considerável no sentir. Desculpa criar-te assim, repentinamente e sem avisar, ando ainda a aprender a controlar esta impulsividade. Mas às vezes a indefinição torna-se tão insuportável, Vera

Quem fala? Quem é?

que assim ao perguntares-me quem sou sempre me vejo um pouco obrigado a definir-me, ou no mínimo ao que sinto. Estou bem! Seguido de um descanso. Porque Vera, começo lentamente (que se vires atentamente não colidirá com a palavra “repentinamente”, o segredo da vida está na elasticidade na conciliação dos advérbios), repito, lentamente, a ter um problema grave, porque constato que, tal como com a música, poderemos estar bem e mal ao mesmo tempo, e ser trágicos e cómicos e tranquilos e românticos e tensos e lentos e rápidos e felizes e infelizes e ficção e realidade. Quando não existes, querida, querido, começo a não saber se estarei bem ou mal ou mesmo alguma coisa. E de repente, Vera, amor, sou imagens e sons e lágrimas e sorrisos e sons de novo e a lamparina confunde-se comigo, juro! ela confunde-se comigo e com a música e com o livro de física e com o candeeiro a abanar porque está vento, e com a gata no seu ritual de limpeza. São seis elementos contando comigo, numa harmonia que se tu soubesses...nem sei o que farias. Nada disto é limpo mas é tão limpo, e eu às vezes acho que a gata sabe de tudo isto tão bem e guarda segredo. Aposto contigo que ela guarda segredos propositadamente, talvez para manter a sua individualidade não se expondo, ou então para se vingar de eu chegar tarde a casa. É o conjunto, a mistura, a mixórdia, no limite o sujo, que lhe dá sentido e beleza. Se tu soubesses como é simples e está aqui tão perto, Vera, está aqui mesmo nestes metros que nos separam. Se tu soubesses como toda a vida cabe nesta lamparina nesta lamparina nesta lamparina. Se tu soubesses.

Quem fala?

Mas eu não te digo.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Carnaval

Cara Dra. Faz frio, estão graus negativos. Tenho saudades do sol de Lisboa. Mas o chão aqui é aquecido. Entrei há pouco numa ourivesaria ali do quarteirão, e fiquei algum tempo a apreciar os anéis. Nunca lhe contei Dra, mas quando era pequena ficava extasiada a contemplar o brilho do ouro. Julgo que a palavra contemplar se aplicará bem, porque me sentava naqueles bancos altos e passava lá tanto tempo que me perdia concentradamente, e as minhas mãos nem ficavam suadas. Noutros raros momentos o mesmo terá acontecido, como quando passava com os braços nas almofadas de seda da minha avó, e hoje em dia quando inesperadamente adormeço com o sol a bater na janela da sala, ou quando por um acaso noto como a luz incide com um ângulo perfeito sobre uma folha. Pensei agora em colocá-la a perguntar-me o que será comum a todas estas situações, e dessa forma reproduzir mais fielmente as interrogações internas.

E porque não o faz?

Para lhe tirar poder à personagem, dra. Escrevo-lhe então deste sítio distante, o que me aumenta mais o controlo. Sabe como este tema é premente nos dias de hoje, e quando exploramos bem surge tantas vezes associado ao tema da responsabilidade. Queria dizer-lhe que no outro dia, no caminho do Loures shopping para casa, adormeci no carro da Ana. Tenho a certeza que está agora com um sorriso, eu dormia mas sorria também, não é sempre que nos deixamos assim embalar. Já lhe aconteceu não entender nada do que lhe dizem e ser invadida por uma tranquilidade inigualável? Segredo-lhe que por vezes, na calada da noite, ponho-me a ler livros em alemão, apenas para me ouvir a emitir aqueles sons. É uma calma que nenhuma compreensão me poderá dar. Gostaria de experimentar umas consultas numa língua totalmente incompreensível, e talvez assim sentisse que me abarca, prolongando um pouco aquela minha ilusão acriançada de ser toda durante 50 minutos, e não apenas uma das minhas personagens. Criar-lhe-ei também uma transparência a si, o que fará com que provisoriamente se sinta impedida de me analisar. Todo e qualquer passado, presente ou futuro que queiramos co-construir nesse espaço comum será com base na incompreensão. Afinal parece-me que a transparência pode estar tão perto do caos. Serei frontal agora, ganho balanço na cadeira para lhe conseguir dizer que, apesar de eu entender que é carnaval, a sensação súbita de sermos apenas dois meros seres mascarados causou-me uma dor aqui, dra, nesta zona aqui. Eram cinco da tarde, a única hora do meu longo dia em que havia uma maior probabilidade de partilhar transparências. Partilhas comigo a tua transparência? Espera, só mais 5 minutos e já te dou, estou quase a passar de nível. E zás! Oh inclemência! Oh martírio! Estará porventura periclitante a saúde desse nobre e querido menino que eu ajudei a criar?! Na sua análise colocou-nos personagens, dra, uma traição à minha exposição, o que pode constituir um dano moral considerável, apesar de sair da objectividade do direito penal. Convirás que tamanha traição criará grande dor (perdoa-me a proximidade, a emotividade da passagem fez-me tratar-te por tu), ainda que estejamos já todos certos, através do princípio da realidade, que mascarados andamos sempre, que o carnaval não são só dois dias. Vou hoje tirar o domingo para viver um pouco no princípio da irrealidade, que a informação é muita e o mundo anda demasiado espartilhado. Espartilhaste-me, esquartejaste-me, fragmentaste-me, para utilizar uma linguagem pós-moderna. Pergunto-te, pergunto-me (que não fujo às responsabilidades) onde foram parar os Peters e os charlies e as blondinas e os reis e as rainhas e os capuchinhos e as belas e os monstros e as wendys e os príncipes e os sapos e os aladinos e todos os animais falantes e as brancas e os anões e as pocahontas, que ainda não apareceram nos textos mas há espaço para todas as princesas. No fundo da minha transparência queria dizer-lhe que julgo que o que há de comum nas situações que lhe expus inicialmente será o brilho ou equivalente sinestésico, como a sensação da seda na pele. Apesar de ainda não saber bem por que razão o brilho me dá a segurança de que preciso para me deixar adormecer. E depois desta minha análise peço-lhe que me devolva as personagens. Por favor. Devolva-me.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Umas mãos deliciosas


P: Wendyzinha…

W: Peter! Ainda bem que apareceste! Peter tenho de te contar já, ontem esteve cá um conjunto de personagens de vários filmes, e comentámos que o capitão gancho anda desaparecido, inclusivamente do facebook. Houve de tudo, simulámos até as lutas dos filmes. Tive medo que nunca mais voltasses.

P: Sabes que não perco uma festa dessas. E prometi-te estar sempre presente. Como podes duvidar?

W: Não dependes de mim, menos ainda do meu desejo. Guardei-te o olho da Sininho. Estive indecisa entre o olho e a mão, a sininho tem umas mãos deliciosas. Que saudades Peterzinho. Falávamos sobre a necessidade de estar disponível para que algo surgisse, e resultou! Fui-me deitar a pedir-lhe que te criasse hoje, nestas horas em que escreve, e prometi-lhe estar disponível para as várias personagens. Olhou para mim e sorriu-me, sabes aquele sorriso de quem ama e protege e te permite ser espontâneo? Peter, sei que não estás ainda por dentro destes conceitos, mas ser espontâneo não significa impulsivo ou sem controlo. As palavras que te digo são pensadas, por vezes escolhidas a dedo. Digo-te isto não vás pensar que o meu amor por ti é fruto apenas de um desejo incontrolável. Disse-lhe então: poderás (temos uma relação próxima, informal) criar algo em que entre o Peter? Porque a Mary Poppins tinha-me dito que era necessário operacinalizar os sonhos, e eu resolvi operacionalizar-te a ti. Foi ainda antes de me deitar, no cheio da noite. Sabes que é no negrume que nos juntamos todos, e durante o dia, dependendo da luz, que por sua vez depende do humor do técnico (quantas dependências meu deus), de dia surge iluminada uma ou outra personagem. Nem ela tem todo o poder de te pôr em cena, são muitas variáveis. Desculpa se são muitas palavras e poucos parágrafos, ler-me-ás assim também de seguida? Tenho pouco tempo para todos os assuntos a tratar. O tom seguinte é sério, prepara-te, e se estiveres atento notarás estas mudanças, a palavra “tratar” introduziu um tom emocional neutro, como se falássemos de um negócio. Desculpa, podes colocar o Peter Pan a fazer-me uma pergunta que me ajude a estruturar o discurso?

P: Diz-me para te perguntar se te tens sentido a mesma, porque te tirou as lágrimas durante um tempo.

W: Foi ela então! Tem-me roubado o sentir!

- Apenas o mau Wendy, desculpa intervir na conversa. Precisei de fazer a experiência. Pensa bem, o que acharias tu de mim se um dia descobrisses que afinal todas as tuas lágrimas foram uma ilusão que justificou um outro desejo, Wendy. Nem sei bem como dizer isto a alguns de vocês, imagina então aqueles com mais dificuldade em expressar-se, ficarão furiosos.

W: Peter, podes traduzir-me por miúdos o que nos diz?

- Imagina tu se por um acaso a necessidade básica, primária, é a de mudança. Explico-te de outra forma: porque mudas, Wendyzinha?

W: Para retirar as minhas lágrimas.

- E se tudo for ao contrário, e te disser que as tuas lindas grossas lágrimas não existem senão para que sintas que te tens de transformar? Como no filme que vimos na 6ª. A identidade está na luta, Wendy, não no conteúdo das lágrimas. Elas constituem apenas a razão que te dou para mudares.

W: Se me disseres não acreditarei. As minhas lágrimas estão no início, não no fim do processo! Peter, faz alguma coisa, ela está a tirar poder às minhas lágrimas! Por favor, diz-lhe que não teorize num dia como este, que nos tira espaço para os dois, logo hoje que me disponibilizei. Explica-lhe que nos amamos, e que só temos estas parcas horas para falarmos um com o outro: então como estás tu? Bem, e tu, o que fazes? e nisto quem sabe até voar um pouco, tinhas-me prometido um voo como prenda de anos. Enquanto escreve eu posso finalmente sentir o vento na cara, ao ponto de ter de fechar os olhos, tal é a vertigem. Sou mera personagem, só quero sentir o vento, só o vento, só o vento. Vuuuuuuuuuuuuuuuuu. Se a história mudar que não me tire o vento, não o vento, não o vento. Saem-me lágrimas dos lados, mas é da velocidade. E agradece-lhe rápido o vento e as lágrimas destes minutos finais, Peter Pan. Que julgo, ou sinto, que lhe estão a acabar as palavras.