domingo, 8 de novembro de 2009

Como uma chuva que sabe o que quer



Diz rápido, estou quase quase a embarcar.

Falei só para perguntar como estavas.

Está imenso trânsito hoje.

E também te queria falar dos espelhos.

Como? Podes repetir? Ouves o barulho das hélices? Nem acredito que estou quase a embarcar.

Queria falar-te sobre os espelhos e sobre o cinema. Surgiu-me a ideia de que talvez a vida espelhe o cinema, e não o contrário. Embora o cinema apareça depois, mas é aquela questão do tempo de que falávamos outro dia, lembras-te? Disseste que fomos nós a inventá-lo, e pensei que, se realmente é assim, talvez o que venha depois possa vir antes.

Ouço-te realmente mal, mas não te preocupes com o tempo, este é o meio de transporte mais seguro, aprendi no curso. Estou a apertar o cinto. Que emoção.

Digo rápido rápido, para tentar corresponder ao nosso tempo. Ontem, enquanto a água escorria pelas minhas costas, tentava entender qual a imagem de mim que via reflectida num espelho imaginado. No fundo faremos isto a todo o instante, uma imagem de nós a cada momento. Se tentares captar esse instante, como quando tiras uma fotografia ou quando fixas o teu olhar no espelho, poderás ter esta sensação de estranheza, porque no momento seguinte já não serás aquele, entendes? O nosso espelho mental é tão automático que nos permite não distinguir os vários slides, como no cinema. As várias fotografias de mim ficam ilusoriamente unidas na minha cabeça.

Parece de facto um sonho, o avião vai mesmo levantar. Fasten seat belts. Vou desligar!

E entendi por que razão a palavra espelho terá aparecido ao lado da palavra cinema. Ou ao mesmo tempo, como preferires, eu prefiro ao lado porque foi a primeira imagem que me apareceu, mas desculpa que assim perco-me e eu sei que tens pouco tempo, apesar de já te ter dito que ele é independente de nós. Pensei então que a nossa vida espelha o cinema, num contínuo que não pára, por contraposição àquela nossa fotografia. Porque feliz ou infelizmente, dependendo do conteúdo, o disparo dos neurónios por vezes é tão forte que imprime a fotografia dúzias de vezes, a vida toda condensada num momento sem tempo. Estou extremamente impaciente porque isto de colocar pontuação nas ideias demora, e daqui a duas horas tenho coro e ainda não comi. Ocorreu-me entretanto, e cá está outro advérbio de tempo, que se os espelhos podem funcionar todos ao contrário, talvez o filme lá de fora espelhe o de cá de dentro, e pergunto-me: o que espelhará esta chuva miudinha sobre mim? Coloquei mesmo um ponto de interrogação porque a chuva que cai ainda não é a suficiente para espelhar pontos finais, demora até que a terra assente e fique unida outra vez. É tão bom quando sai aquela chuva de rompante e nos dá a sensação segura duma chuva que sabe o que quer. Digo-te tudo isto num repente, não apenas por causa do tempo e do teu avião, mas para ver se é a pontuação que me impede de chegar ao que quero captar, que é aquele instante exacto em que a terra bate na chuva e eu posso finalmente apertar bem o cinto e dizer, colocando um ponto final no fim da afirmação: aí vou eu outra vez. Ligo-te quando chegar.






5 comentários:

Anónimo disse...

Que lindo texto! Transmite-me algo de mágico que não sei explicar...

Beijinhos ***
Inês

inês disse...

Obrigada Inês! :)

Beijinhos

Inês

melro azul disse...

o meu espenho mental chegou a pensar que o unico eu possivel era com um enorme barrigão. agora ja nem me lembro como era. e o regresso ao trabalho junta as duas pontas da fita, num continuum, até parece que nunca de là sai.
é estranho
beijos

Anónimo disse...

Fica uma sensação leve...

Anónimo disse...

Ora aí tens uma chuva que sabe o que quer!! Acabei de apanhar a molha do ano!