Não se mexia, mas não por estar a
seguir uma qualquer ordem ou pedido, pois todas as palavras à sua volta eram
ruídos indecifráveis, como quando enchia a banheira e ouvia os vizinhos com
palavras cheias de água. Uma palavra só adquire significado quando comparada
com a mesma palavra em todas as histórias que já lemos/vivemos, sem memória
fica vazia. Desconhecia sequer o que se passava, mas não tinha palavras para perguntar.
Vivia apenas aquela sensação que tinha nas costas, não imaginando que resultaria
de um pedaço de ferro que se tinha entranhado no corpo, como resultado de um
choque não frontal.
Lembra-se?
Não se lembrava, digo-vos eu que
vi a cena a acontecer. Não se mexia, respeitando assim a lei da inércia, que
nos mostra empiricamente que, se a força é nula, a velocidade do objecto é
constante. Há uma certa justeza, ou mesmo justiça, nas leis da física. São
aplicadas a todos os corpos de igual forma, não há escapatória. Não se lembrava
do seu nome nem de que casa seriam as chaves que tinha cuidadosamente guardado,
era apenas ela e o seu corpo. Tinham saído de casa e enchido a carrinha como
sempre, lembrava-se disso. Chegados, havia que carregar tudo e habitar a casa
que era grande, fria e húmida, demorava o seu tempo. Com certa avidez, começava
por fazer dela o espaço exterior, ocupando-lhe os cheiros com o nariz, o sol
com a cara e o chão com os pés. Passado um pouco, já a terra lhe tinha
devolvido os pés, o sol a cara, e o cheiro o nariz. Julgo que talvez fosse o
que ia lá fazer, sabia que sem chão não teria pés, digo pés de verdade. Podemos
tentar pairar, mas um dia olhamos e não são nossos e ficamos assim todos
espantados com o acidente
Lembras-te?
Não se mexia, não se lembrava,
digo-vos eu que vi a cena a acontecer. Diz-nos o princípio fundamental da
dinâmica que a mudança de movimento é
proporcional à força motora imprimida, e é produzida na direcção de linha recta
na qual aquela força é aplicada. Sabia então que, para encontrar o chão
que lhe devolvesse os pés/o amor, uma força teria de lhe ser aplicada de cima
para baixo. Saiu de casa, não queria esperar por que o tecto lhe caísse em
cima, e começou a andar em direcção ao seu encontro. Um estrondo abafou-lhe as
palavras e preencheu o seu corpo de memória, projectando-o de forma acelerada
no sentido da terra/do céu. Havia pereiras e árvores que dão damascos,
ameixoeiras, videiras. Antes de haver muita relva havia um mato, e ao fundo uma
figueira e ainda mais ao fundo, um rio que com as cheias inundava tudo cá em
baixo. Um dia, chegaram lá, e estavam os patos e os livros todos à solta, com
bocados de palavras esborratadas pela água.
Se te lembras
Não se devem prender livros/patos
num rés do chão ao pé de um rio, é pouco precavido, e torna a tarefa de recuperar
a memória quase tão difícil quanto habitar-nos o corpo/o mundo assim por
completo, mesmo ele preenchendo-nos o nome e sendo nosso por decisão superior. A
gente faz de tudo para lembrar/esquecer de nós, se contorce toda, muda
de sotaque, de língua, de nacionalidade, e quando tudo isso não funciona,
afasta os pés do chão e passa a fingir que tem asas, sem entender que voar,
nesse nosso mundo, só para pássaros. Aqui menina, para chegar alto, só fincando
os pés. Achar que pode chegar ao céu sem pôr os pés na terra é puro engano, não
resultante de desconhecimento da última lei, que nos diz que se um corpo faz
uma força noutro, receberá desse outro corpo uma força de igual intensidade e
sentido oposto à força aplicada, mas produto do esquecimento.
Aqui menina. Lembras-te?
A gente faz de tudo para lembrar/esquecer
de nós, se contorce toda, muda de sotaque, de língua, de nacionalidade, e quando
tudo isso não funciona, finca os pés no chão e passa a saber que tem asas e que
ela, afinal, era/sou eu.