domingo, 7 de outubro de 2018

Um conto sem jeito




Não se mexia, mas não por estar a seguir uma qualquer ordem ou pedido, pois todas as palavras à sua volta eram ruídos indecifráveis, como quando enchia a banheira e ouvia os vizinhos com palavras cheias de água. Uma palavra só adquire significado quando comparada com a mesma palavra em todas as histórias que já lemos/vivemos, sem memória fica vazia. Desconhecia sequer o que se passava, mas não tinha palavras para perguntar. Vivia apenas aquela sensação que tinha nas costas, não imaginando que resultaria de um pedaço de ferro que se tinha entranhado no corpo, como resultado de um choque não frontal.

Lembra-se?

Não se lembrava, digo-vos eu que vi a cena a acontecer. Não se mexia, respeitando assim a lei da inércia, que nos mostra empiricamente que, se a força é nula, a velocidade do objecto é constante. Há uma certa justeza, ou mesmo justiça, nas leis da física. São aplicadas a todos os corpos de igual forma, não há escapatória. Não se lembrava do seu nome nem de que casa seriam as chaves que tinha cuidadosamente guardado, era apenas ela e o seu corpo. Tinham saído de casa e enchido a carrinha como sempre, lembrava-se disso. Chegados, havia que carregar tudo e habitar a casa que era grande, fria e húmida, demorava o seu tempo. Com certa avidez, começava por fazer dela o espaço exterior, ocupando-lhe os cheiros com o nariz, o sol com a cara e o chão com os pés. Passado um pouco, já a terra lhe tinha devolvido os pés, o sol a cara, e o cheiro o nariz. Julgo que talvez fosse o que ia lá fazer, sabia que sem chão não teria pés, digo pés de verdade. Podemos tentar pairar, mas um dia olhamos e não são nossos e ficamos assim todos espantados com o acidente

Lembras-te?

Não se mexia, não se lembrava, digo-vos eu que vi a cena a acontecer. Diz-nos o princípio fundamental da dinâmica que a mudança de movimento é proporcional à força motora imprimida, e é produzida na direcção de linha recta na qual aquela força é aplicada. Sabia então que, para encontrar o chão que lhe devolvesse os pés/o amor, uma força teria de lhe ser aplicada de cima para baixo. Saiu  de casa, não queria esperar por que o tecto lhe caísse em cima, e começou a andar em direcção ao seu encontro. Um estrondo abafou-lhe as palavras e preencheu o seu corpo de memória, projectando-o de forma acelerada no sentido da terra/do céu. Havia pereiras e árvores que dão damascos, ameixoeiras, videiras. Antes de haver muita relva havia um mato, e ao fundo uma figueira e ainda mais ao fundo, um rio que com as cheias inundava tudo cá em baixo. Um dia, chegaram lá, e estavam os patos e os livros todos à solta, com bocados de palavras esborratadas pela água.

Se te lembras

Não se devem prender livros/patos num rés do chão ao pé de um rio, é pouco precavido, e torna a tarefa de recuperar a memória quase tão difícil quanto habitar-nos o corpo/o mundo assim por completo, mesmo ele preenchendo-nos o nome e sendo nosso por decisão superior. A gente faz de tudo para lembrar/esquecer de nós, se contorce toda, muda de sotaque, de língua, de nacionalidade, e quando tudo isso não funciona, afasta os pés do chão e passa a fingir que tem asas, sem entender que voar, nesse nosso mundo, só para pássaros. Aqui menina, para chegar alto, só fincando os pés. Achar que pode chegar ao céu sem pôr os pés na terra é puro engano, não resultante de desconhecimento da última lei, que nos diz que se um corpo faz uma força noutro, receberá desse outro corpo uma força de igual intensidade e sentido oposto à força aplicada, mas produto do esquecimento.

Aqui menina. Lembras-te?

A gente faz de tudo para lembrar/esquecer de nós, se contorce toda, muda de sotaque, de língua, de nacionalidade, e quando tudo isso não funciona, finca os pés no chão e passa a saber que tem asas e que ela, afinal, era/sou eu.