sábado, 9 de dezembro de 2017

Maiúscula



Eu em miúda era medrosa, palavras que só podem ser verdade, é uma questão matemática. Quando eu era velha, a minha avó era ainda uma criança. Isto porque quanto mais velhos ficamos mais os outros ficam novos, é outra questão daquelas. Quando ela era pequena, tapava-me os pés frios quando vinha da escola com o robe do meu avô, que era ainda mais pequeno do que ela. E fazia isto tudo de uma forma distraída, o amor vinha sem esforço. A pele das mãos dela tocava nos meus cabelos de uma forma leve e intensa, como quem anda na rua sem destino, só a observar



gosto de ti devagar



ou como os cães que se passeiam sem ser para fazer xixi. Todas as palavras são verdadeiras, mesmo as que parecem dizer outras coisas. Quando eu era pequena, tinha medo dos passeios da escola. Porque eu ia andando distraidamente e com intenção a olhar para tudo menos para as palavras que queriam que eu proferisse de seguida



hoje eu fui ao mercado e vimos raias. As raias são animais



e eu queria lá saber que as raias tivessem o corpo achatado dorsiventralmente e que as fendas branquiais se encontrassem por baixo da cabeça.



Talvez tenha sido aqui que eu tenha começado a ter medo, quando ela era pequena, e eu velha, por consequência daquelas matemáticas. Comecei a guardar as palavras todas nas gavetas e nos armários, era seguro que as viesse a usar mais tarde, tendo em conta que a vida é cíclica e que afinal não mudamos assim tanto, uma vírgula aqui ou um ponto acolá. Quando era pequeno, praticamente não usava vírgulas ou pontos, como aliás quase todas as crianças



hoje fui ao mercado e fomos na carrinha e eu enjoo na carrinha e era uma vez uma raia que resolveu experimentar viver na cidade em vez de viver no mar e talvez com esforço/distraidamente  ela consiga manter-se fora de água e eu dentro porque sem vírgulas e enchendo o peito de ar pode ser que dê para fazer a piscina toda de um lado ao outro,



Viste a raia?



assim de supetão. Qual raia? eu ainda estou na piscina, é mais difícil colocar pontos num meio aquoso, as palavras demoram mais tempo a chegar. A minha avó, no entanto, era muito terra a terra, não a julgue o contrário quem nunca a conheceu, e não seria justo descrevê-la dessa forma. Digamos que era uma avó pouco poética, não havia dúvidas quando a ouvia a fazer o almoço ou a estender a roupa ou a chorar ou a tapar-me



vais ficar quente



e eu demorava a aterrar porque tinha pressa em atravessar a piscina mas acreditava nas palavras dela sem respirar ou sem dúvidas apesar dos pés ainda gelados da água. Podia assinar o amor dela de cruz,



vais ficar quente e ponto final, Inês.



quando me dava assim o meu nome, confirmando-me, aparentemente sem querer, a nossa existência. Quando eu era miúda era medrosa, e a minha avó era já velha. Isto porque quanto mais novos ficamos mais os outros ficam velhos, é uma questão daquelas, matemática. Quando tu eras pequeno, já ela me tapava os pés frios quando vinha da escola com o robe do meu avô, que era mais velho do que ela. E fazia isto tudo de uma forma distraída, mas já com vírgulas e pontos,



Gosto de ti com vagar.



e por isso o meu nome vinha  assim, sem esforço e com maiúscula. As palavras dela tocavam nos meus cabelos de uma forma leve e intensa, como quem anda na rua sem destino, só a respirar, ou como os cães que se passeiam sem ser para fazer xixi, já sem medo rasurado. Todas as palavras são verdadeiras, mesmo as que parecem dizer o que é. E talvez tenha sido aqui que eu tenha começado a não ter medo de respirar/existir fora de água, uma vírgula aqui, um ponto acolá. E também de assinar de cruz e com maiúscula o amor dela, quando era pequena, e o meu, quando era velha.