Fechei as portas e as janelas e
os olhos e a boca e os ouvidos e os cabelos e a pele, que é a única forma que
conheço de começar. Aqui, tinha já vivido muitas coisas, em três horas pode-se
escrever muito. De três horas faço 3 dias, que é como quem diz 30 anos, oitos
fora zero. Entretanto fui respirar, que é como quem diz transformar o que via
enquanto a vida se passeava por mim no café em frente à árvore em frente ao
parque infantil. Diz-se que o processo respiratório é o mecanismo através do
qual obtemos água e energia, mas diz-se tanta coisa.
Quando eu tinha 8 anos, existia
na minha escola uma estrutura de ferro em forma de U invertido, isto se
considerarmos o chão a base, o que nem sempre acontece na vida real/imaginária.
Mas enfim, este é um texto descritivo, que tem como objectivo primeiro/último
que o leitor me ajude a manter a memória, ou talvez a fazê-la desaparecer. Tudo
é relativo/história, e até a sensação de estar tudo ao contrário depende
do referencial/de ti.
“e
um dia decerto mesmo duvidamos, dia não tão distante como nós pensamos, se
estivemos ali se madrid existiu”1
Ali, pendurava-me no topo da
estrutura, com os pés presos na cruz de ferro, de cabeça para baixo. Ou talvez
fosse para cima, pois nesses momentos a vida de repente estava certa, e eu não
me lembro de alguma vez me ter sentido tão vertical
- Olha que cais
- Posso lá cair do chão?
mas eu sabia lá. Naquele lugar, havia
uma estranha certeza em mim de que jamais os meus pés se soltariam do ferro que
estava no céu. Por cima da minha cabeça, a uns metros, estava a areia com que
gostava de sujar as minhas mãos, e em volta os baloiços, as salas de aula, o
muro que separava os pequenos dos grandes, as escadas para a biblioteca, o
tanque, as pedras, o corrimão verde, a árvore ao lado
- Olha que te perdes
- Posso lá perder-me de mim?
tudo no seu devido lugar. Era um
lagar silencioso, onde se esmagavam as uvas da vindima, quando eu tinha 8 anos,
oitos fora nada. Pisava o chão de galochas, ou mesmo descalça, de cabeça para
baixo tendo o céu como limite/chão. No processo de transformação da uva em
vinho, diz-se, o esmagamento deve ser leve, para que não afecte a semente e não
traga amargura ao vinho
“que
embora tudo mude nunca muda, ou se mudar que se não lembre de morrer”1
mas diz-se tanta coisa, e eu
sabia lá. Naquele lagar, eu só queria ouvir o silêncio das minhas pernas
enérgicas e do líquido a aumentar de volume, quase até às minhas costas.
“Terá
mesmo existido o sítio onde estivemos? Aquela hora certa aquele lugar?”1
Ficava ali, pendurada, a olhar para a areia por cima da
minha cabeça e para o líquido a rodear-me a pele, os cabelos, os ouvidos, a
boca, os olhos, as janelas e as portas, que é a única forma que eu conheço de
terminar, que é como quem diz começar, e tudo o resto é história. Mas diz-se
tanta coisa.
Eu
sei
lá.
1 Excertos retirados
do poema Muriel, de Ruy Belo