domingo, 10 de abril de 2011

Modo de lá

Lá em dois portos os lençóis estavam sempre húmidos e a casa cheirava a roupas metidas em baús. Era tão bom voltar no domingo à noite e sentir-me ainda cheia de terra e de água e de gerúndio e de flores e de relva e de peras. O quarto dos meus avós tinha um cheiro particular e eu cheguei a lá dormir, talvez num dia em que estava muita gente e não havia mais lugares. Lá em dois portos os armários da cozinha estavam pintados de verde. Tu não fazes parte de dois portos, e por isso te tenho de explicar que o melhor de tudo era a mesa de pingue pongue. Ainda se ouvem as bolas a bater e eu fazia razias sem querer ou talvez sem pensar, o que é algo totalmente diferente. E o meu pai dizia


- Não entendo como é que fazes jogadas tão boas.


Lá em dois portos, nos dias de festa, comíamos muitas vezes cá fora e vinham outras pessoas, inclusivamente uma tia que bebia bagaço e tinha quase 100 anos. Tu não vinhas, estarias provavelmente no Algarve


- Onde tinha uma casa mesmo em frente ao mar


e onde terás aprendido a surfar? Lá em dois portos as coisas não eram, por vezes, tão boas como poderão parecer neste texto. Porque estava frio e muito húmido e eu sofro bastante com o frio e com a humidade e por essa razão só posso gostar disso muito tempo depois, quando já está calor. E é talvez por isso que eu tento escrever em modo de lá, que não é maior nem menor. E há ainda a acrescentar que lá passava longas horas a estudar química e a fazer exercícios ou a apanhar peras com culpa de não estar a estudar, sem nunca imaginar que anos mais tarde iria passar outras tantas e longas horas a dissociar o prazer de apanhar peras do sentimento de culpa. Lá o chão era feito de pedras relativamente grandes e de várias cores. No verão, quando estava sol, esse chão ficava quente e eu sentava-me com a pele directamente nas pedras, e esta será uma bela recordação, não apenas na forma mas também no conteúdo, porque eu não sofro nada com o calor. Lá em dois portos eu tinha já tantas saudades de ti como agora tenho de dois portos. E jogava ao sete


- isso era em Lisboa, em casa da avó


e isso são pormenores que podem ser importantes porque por vezes a essência está contida nos detalhes. Eu julgo que me terei sentido muito só, lá. Porque a casa era muito grande e havia muitos quartos, cada um mais húmido do que o outro. E havia um baloiço de ferro que foi o meu avô que fez, sendo difícil para mim imaginar o meu avô a trabalhar o ferro. E o João empurrava o baloiço mesmo muito alto antes de nos irmos embora, enquanto estavam a preparar o carro, normalmente já ao cair da tarde, e eu lembro-me de ser tão alto que imaginava


- e se eu soltasse as mãos e voasse?


Eram os outros que preparavam o carro porque eu era criança, ainda não tinha de ajudar.


- e se eu soltasse as mãos e voasse?


Juro que me lembro de o pensar, não inventei agora para ti. Ou talvez tenha inventado para to dizer, mas já terá sido há muitos anos, porque eu devia ter uns oito anos para ainda caber no baloiço. Lá em dois portos eu ia com o meu avô ao pão e adorava aquele cheiro da massa mas perguntava-me como podia a padeira viver naquele sítio, porque o meu avô disse-me que ela vivia lá si dó ré mi fá sol lá. Chegou a haver morangos em dois portos mas deixou de haver, acho que foi porque o clima não seria o adequado para esse tipo de frutos. Imagino que o meu avô fosse alguém que gostasse de fazer experiências, mesmo que depois constatasse que o clima não era o adequado. Mas havia videiras e todos os Setembros apanhávamos as uvas com umas tesouras próprias, que têm um elástico que prende os dois lados. E no fim ia de galochas ou descalça para dentro do lagar pisar as uvas. Lá em dois portos não havia cerejas nem os teus beijos mas havia muitos medos como há hoje


- e se eu soltasse as mãos e voasse?


Tu não conheces o meu baloiço amarelo torrado que estava preso a um outro ferro vermelho, nem poderás conhecer, ainda que eu to descreva com todo o pormenor. E então o João parava o baloiço e alguém ia abrir o portão para saírem os carros. E no dia seguinte tinha teste de química mas talvez te viesse a conhecer durante a semana, pensava. E se isso acontecesse, teria de ter uma prenda para te dar, em troca de um beijo ou mesmo de uma história


- lês-me uma história?


Pelo sim pelo não, era melhor fixar todos os pormenores. Talvez o essencial ficasse preso no baloiço ou nas pedras ou no frio ou nos morangos ou na humidade ou nas peras ou nas galochas ou no cheiro do pão ou mesmo nas cerejas, apesar desse fruto nunca ter existido lá em dois portos.