domingo, 13 de novembro de 2011

O tempo das laranjas

Quando eu era pequena eu jogava ao sete com uma daquelas bolas saltitonas que se compravam na papelaria ao pé dos meus avós. E tinha também um outro brinquedo, que era uma aranha que se atirava à parede e descia sozinha. Quando eu jogava ao sete eu inventava jogadores, à volta de cinco para que o campeonato não demorasse demasiado tempo. Talvez eu tenha criado esta brincadeira por não ter com quem jogar, estando hoje em dia convencida que tal facto terá contribuído para este outro jogo, mais actual, de por vezes fingir que sou tu. E a minha avó


- Não andes descalça


- Descalça o chão segura-me melhor


e eu tinha tanta razão. Eu gostava de eliminar o tempo (estamos no futuro, nesta nossa língua quase tudo é possível), o que seria o inverso de dar-lhe um tiro porque seria juntar todos os seus bocadinhos. Para acabarmos de vez com esta coisa de querermos ser grandes quando somos pequenos e vice-versa. E já agora acabava também com a pele, e num ápice as minhas personagens do jogo do sete transformavam-se numa só, assim como eu e tu. Éramos tudo de uma vez a cada instante. Acho que os humanos criaram o tempo e a pele só para passarem a vida à procura


- Olha que o chão está gelado


- Descalça o chão segura-me melhor


ou então porque simplesmente não aguentavam tamanha intensidade ou então para que eu pudesse distinguir um beijo teu mesmo à distância ou então. Sem tempo não haveria movimento e por isso também não haveria ondas, o que talvez ainda fosse pior do que confundir-nos os beijos. Quando eu era pequena pedia ao meu pai que me prendesse para que eu, em glorioso esforço, fugisse, sendo provável que nesse momento se tenha instalado alguma confusão entre a fuga e a liberdade. Quando eu era pequena a minha mãe fazia duas tranças no meu cabelo e prendia-as com fitas com um elástico por baixo, para não se soltarem


- Estão bem presas?


- Segura-me melhor


Muitas vezes eu penso (e assim misturo vários tempos) que gostava de ir viver para outro sítio só para me despir/despedir destas palavras, mas depois entendo que a confusão seria a mesma do que quando eu fugia dos braços do meu pai. Hoje eu fui à praia apesar de ser Outono, e este é um tempo mais presente do que o dos parágrafos anteriores ainda que o verbo seja passado, há coisas assim sem explicação. Hoje eu tive tantas saudades dos teus beijos que fui ao mercado comprar laranjas mas não havia porque acho que não é o tempo delas e eu desisti. Porque eu ia perder o dia todo nos mercados à procura de laranjas e dizem que elas à noite matam e então eu fui à praia ver se ainda havia ondas


- Descalça


e havia mesmo e isso descansou-me, porque eu também sou humana. E por fim, porque há que honrar os inícios, eu quero falar-te das aranhas. Eu tenho (presente presente) alguma resistência em falar das aranhas que desciam sozinhas, talvez por lembrar-me que já na altura (quando eu era pequena) era grande a ambivalência dos meus sentimentos. Eu passava tardes a atirá-las vezes sem conta até perderem a cola e já não se segurarem. E houve um dia (passado passado) em que eu fiquei tão triste que pus cola nas patas de uma aranha que era azul e atirei-a bem lá para cima para poder vê-la a descer durante um tempo que na altura (quando eu era pequena) me parecia infinito. Mas não resultou e então eu desisti. Porque eu ia perder o dia todo nos mercados à procura dos teus beijos e dizem que eles à noite matam e então eu fui à praia ver se ainda havia ondas


- Descalça o chão segura-me melhor


e havia mesmo.