Rafa. Levei horas, talvez dias, talvez mesmo anos a escrever. É domingo, dia de visitas aqui. Veio cá a Leo, trouxe-me cerejas, um luxo que achou que merecia pelo bom comportamento. Sabes bem que estes dias são complicados, a junção dos dois mundos é tão difícil. Às três horas ouve-se o megafone (conto-vos porque sei da curiosidade humana pelo submundo dos presos):
Número 1061, visita.
Há muito barulho aqui, Rafa, muitos gritos e também as chaves nos ferrolhos. Percorro o corredor tentando lembrar-me de mim aí fora, não só para corresponder às expectativas da Leo, mas também para viver um pouco o sonho.
Número 1061, chamado à terra.
É verão Rafa, sê um pouco condescendente com o meu sonho, que não é senão uma forma de protecção. Quando o interior e o exterior são demasiado diferentes pode descambar para a loucura. E nota, a tua realidade é o meu sonho, os dois encontram-se na sala de visitas.
Sr. guarda, pode deixar-nos a sós? Gostava de eliminar os elementos que fazem parte de cada um dos mundos. Só assim eles se poderão juntar no que lhes é essencial.
O sr. ribeiro deixou-nos a sós, é uma crença irrealista a que existe sobre a má vontade dos guardas. Permanecemos então em silêncio esses dois minutos, dois porque é par e é redondo. A imagem é intensa mas harmoniosa, Rafa, sem qualquer tensão. Há imagens que nos ficam guardadas na memória, no meio de todo aquele drama lembro-me de pensar:
Quero utilizar esta imagem num texto.
Fotografei-nos então em silêncio, julgo que nem se terá ouvido o barulho da máquina a disparar. Mas o rádio tocava, Rafa,
Sentiiiiiiiiir, que es un soplo la vida. Que veinte años no es nada, febril la mirada, entra por essa porta agora, e diga que me adora, Here she comes again, Não há leis para te prender, aconteça o que acontecer (recomenda-se leitura cantarolada)
Perdoa-me, é que quero pormenorizar o contexto, que é ele que nos conduz e nos guia e nos estrutura. Fixo-me, fixo-a, fixo-nos, condensando assim numa pedra de gelo toda aquele mar que envolvia a realidade da Leo, ou antes o meu sonho, como preferirem.
Não chores, querido Peter, um dia destes voltas a casa.
É linda a minha Leo, inundou-me a sala de visitas de cerejas e de verão. E o megafone:
5 minutos para o final das visitas.
O sr. ribeiro, o guarda simpático de há pouco:
Tenho de te levar. Mas há mais domingos, rapaz. Dás-me uma cereja?
Claro, sr. guarda.
Que ele coitado também passa cá muitas horas, profissão dura esta, mais ainda no Verão.
Escrevo-te já da cela, mas digo-te que o mais difícil é aquele corredor, Rafa. É tanto o barulho que eu chego a duvidar que aqueles passos sejam meus, e que sejam minhas as mãos que sentem as cerejas que guardei nos bolsos. Percorro então o corredor a cantar, que diz o povo ser a melhor forma de espantar os males
Volveeeeeer, con la frente marchita…
Voltei, Rafa. Podes avisar a Leo? E por favor, agradece-lhe as cerejas.
Número 1061, visita.
Há muito barulho aqui, Rafa, muitos gritos e também as chaves nos ferrolhos. Percorro o corredor tentando lembrar-me de mim aí fora, não só para corresponder às expectativas da Leo, mas também para viver um pouco o sonho.
Número 1061, chamado à terra.
É verão Rafa, sê um pouco condescendente com o meu sonho, que não é senão uma forma de protecção. Quando o interior e o exterior são demasiado diferentes pode descambar para a loucura. E nota, a tua realidade é o meu sonho, os dois encontram-se na sala de visitas.
Sr. guarda, pode deixar-nos a sós? Gostava de eliminar os elementos que fazem parte de cada um dos mundos. Só assim eles se poderão juntar no que lhes é essencial.
O sr. ribeiro deixou-nos a sós, é uma crença irrealista a que existe sobre a má vontade dos guardas. Permanecemos então em silêncio esses dois minutos, dois porque é par e é redondo. A imagem é intensa mas harmoniosa, Rafa, sem qualquer tensão. Há imagens que nos ficam guardadas na memória, no meio de todo aquele drama lembro-me de pensar:
Quero utilizar esta imagem num texto.
Fotografei-nos então em silêncio, julgo que nem se terá ouvido o barulho da máquina a disparar. Mas o rádio tocava, Rafa,
Sentiiiiiiiiir, que es un soplo la vida. Que veinte años no es nada, febril la mirada, entra por essa porta agora, e diga que me adora, Here she comes again, Não há leis para te prender, aconteça o que acontecer (recomenda-se leitura cantarolada)
Perdoa-me, é que quero pormenorizar o contexto, que é ele que nos conduz e nos guia e nos estrutura. Fixo-me, fixo-a, fixo-nos, condensando assim numa pedra de gelo toda aquele mar que envolvia a realidade da Leo, ou antes o meu sonho, como preferirem.
Não chores, querido Peter, um dia destes voltas a casa.
É linda a minha Leo, inundou-me a sala de visitas de cerejas e de verão. E o megafone:
5 minutos para o final das visitas.
O sr. ribeiro, o guarda simpático de há pouco:
Tenho de te levar. Mas há mais domingos, rapaz. Dás-me uma cereja?
Claro, sr. guarda.
Que ele coitado também passa cá muitas horas, profissão dura esta, mais ainda no Verão.
Escrevo-te já da cela, mas digo-te que o mais difícil é aquele corredor, Rafa. É tanto o barulho que eu chego a duvidar que aqueles passos sejam meus, e que sejam minhas as mãos que sentem as cerejas que guardei nos bolsos. Percorro então o corredor a cantar, que diz o povo ser a melhor forma de espantar os males
Volveeeeeer, con la frente marchita…
Voltei, Rafa. Podes avisar a Leo? E por favor, agradece-lhe as cerejas.