segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Ainda hoje!

Volto em Janeiro, quando o ano começar.

Porque não hoje? Não te reconheço nestes rituais.

Nem eu. Obrigada pelas visitas, passarinho. Prometo que volto, que seria de mim sem ti? Deixo-te o que leio. E hoje, mesmo mesmo antes de dormir, que há um momento breve em que sei que finalmente me irei entregar ao sonho, acontece-te o mesmo? Uma confiança tranquila, rodeada de lençóis e do cobertor pesado, e de todos os sons e dos olhos da gata a fixarem-me, todos os dias me fixa quando me deito, como se também ela estivesse espantada com o espectáculo. Dizia que hoje, ainda hoje e não apenas em Janeiro, guardarei nesse instante a imagem de ti, com os teus lençóis e o teu cobertor e os teus sons e todos os teus bichos, passarinho meu, e com as tuas palavras, que nesse momento serão as mesmas que as minhas, promete-me que sentes as mesmas palavras ao mesmo tempo que eu, apesar de nem teres de prometer, mas promete. E àquela hora, tu sabes qual é a hora, não é quando se ouvem as 12 badaladas, que esse momento é de correria, é já no fim da história, quando ela encontra o sapato. Nesse instante em que quase quase durmo mas ainda não, eu saberei que através das nossas mesmas palavras estarás no meu lençol e no meu cobertor e também nos olhos fixos da minha gata.


Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra.

[…]

Isso que fica aí não são memórias alinhadas. Não têm essa pretensão. São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um acontecimento – e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se desenrolou, interessou-me a cor, um aspecto, uma linha, um quadro, uma figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer – desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas. O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo…

[…]

Há horas em que as coisas nos contemplam, e estão por um fio a comunicar connosco. Às vezes é um nada, um momento de êxtase em que distintamente ouvimos os passos da vida caminhando.

Raul Brandão, excertos de Memórias, 1918