sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O capuchinho vermelho da Branca de Neve

Paula Rego - Swallows The Poison Apple

Branca de neve, é agora que apareces!

BN: Mas eu não sei a minha fala.

Então branca? Essas indicações foram-te dadas há muito tempo.

BN: A culpa não é minha, sou inocente por natureza. A história vinha com algumas falas apagadas. Estava ali a comentar com o lobo se seria engano, e a nossa interpretação é de que talvez tenham feito de propósito.

E qual seria a função desse propósito?

BN: Ora, o improviso dá sempre um toque de realismo. Além disso esta cena entre mim, a capuchinho e o lobo é bastante estranha. Onde queres exactamente que me coloque?

Onde anda a capuchinho? Vocês andam desvairados, e eu só consigo concretizar as cenas a ver-vos todos juntos. Assim é impossível, peço-vos um pouco de disciplina.

CV: Oi! Peço desculpa, fui visitar a minha avó num instante, porque não sabia até que ponto as filmagens de hoje iriam afectar a nossa relação. Tem calma, passam apenas 15 minutos da hora que pediste, e ainda tive de fazer os bolos. Disseste-me que fazê-los eu era um pormenor importante para activar o lado emotivo da história. Venho ansiosa, já reparaste que esta cena tem poucas falas definidas? Como fazemos?

Começa a Branca, que assim é mais fácil para ti, restringe-te as opções de resposta. Nesta cena estão a falar frente a frente, e o lobo está ao teu lado, sentado, também em frente a ela. Branca, não te preocupes, diz o que te passar pela cabeça, e a história logo se irá construindo. Comecem.

BN: Passou-se muito tempo. Muita água correu debaixo da ponte.

CV: É verdade.

BN: Canta-me alguma canção antiga…estou carente.

CV: pela estrada fora, eu vou bem sozinha…levar estes bolos à minha avozinha.

BN: Play it, lobo. Play as time goes by.

CV: O quê?! Ouve, estou um bocado cansada destes teus protagonismos, branca de neve. Sabes bem que o lobo não sabe tocar nem cantar. Chama um dos teus anões se quiseres, mas não admito que faças pouco das personagens da minha história. Além disso não és coerente, pediram-te uma personagem boa, ingénua e inocente. E tu lobo, não tens nada a dizer na criação do clímax desta história?

BN: ora, e tu?! Tão independente e protectora, quando és apenas uma criança! Achas real e coerente saberes desenvencilhar-te de um lobo no meio desta floresta?!

CV: Por não ser real é que sou coerente, essa é a nossa função. Explicaram-nos na formação quão importante era a não ambivalência das personagens. Aproveito a tensão para te dizer que vi o príncipe há pouco com a Bela adormecida.

BN: Oooooh, com a Bela…

CV: Toma um bolo dos meus, não aguento ver-te nessa tristeza. Sou vingativa mas tenho bom fundo. E aqui começa o diminuir da tensão, teremos apenas de arranjar um final feliz. Então Branca, engasgaste-te?! Branca! O pico da tensão era o anterior! Lobo, rápido, faz-lhe a manobra de heimlich. Oh deus, eu juro que não era este o rumo da história, demorei horas a colocar as passas nos bolos, simplesmente porque a avó me disse que andavam a saber-lhe ao mesmo havia demasiado tempo. Foi por isso com amor, Branca, foi um acaso de uma passa amorosa. É incrível como a história se repete à conta dos acasos. Branca, antes que adormeças de novo na floresta tenho de te contar, aguenta-te na manobra dois segundos para que te conte que o príncipe da Bela não era o teu, por favor perdoa-me. E adormece descansada que tenho a certeza que ele irá salvar-te. Lobo, ajuda-me a terminar com tudo isto, que julgo que a cena ficou demasiado longa e eu sinto-me rigidificada nesta triangulação que afinal já é uma hexagonação, se contarmos com as personagens referidas mas não presentes. E não conto com os anões.

Lobo, antes de cortarmos precisamos de um improviso teu, a capuchinho tem razão.

L: Que poderei eu dizer? Julgo que os problemas de três meras personagens não contam muito neste mundo louco. Um dia irás entender, capuchinho vermelho. Entretanto, estou de olho em ti, miúda.


segunda-feira, 23 de novembro de 2009

domingo, 8 de novembro de 2009

Como uma chuva que sabe o que quer



Diz rápido, estou quase quase a embarcar.

Falei só para perguntar como estavas.

Está imenso trânsito hoje.

E também te queria falar dos espelhos.

Como? Podes repetir? Ouves o barulho das hélices? Nem acredito que estou quase a embarcar.

Queria falar-te sobre os espelhos e sobre o cinema. Surgiu-me a ideia de que talvez a vida espelhe o cinema, e não o contrário. Embora o cinema apareça depois, mas é aquela questão do tempo de que falávamos outro dia, lembras-te? Disseste que fomos nós a inventá-lo, e pensei que, se realmente é assim, talvez o que venha depois possa vir antes.

Ouço-te realmente mal, mas não te preocupes com o tempo, este é o meio de transporte mais seguro, aprendi no curso. Estou a apertar o cinto. Que emoção.

Digo rápido rápido, para tentar corresponder ao nosso tempo. Ontem, enquanto a água escorria pelas minhas costas, tentava entender qual a imagem de mim que via reflectida num espelho imaginado. No fundo faremos isto a todo o instante, uma imagem de nós a cada momento. Se tentares captar esse instante, como quando tiras uma fotografia ou quando fixas o teu olhar no espelho, poderás ter esta sensação de estranheza, porque no momento seguinte já não serás aquele, entendes? O nosso espelho mental é tão automático que nos permite não distinguir os vários slides, como no cinema. As várias fotografias de mim ficam ilusoriamente unidas na minha cabeça.

Parece de facto um sonho, o avião vai mesmo levantar. Fasten seat belts. Vou desligar!

E entendi por que razão a palavra espelho terá aparecido ao lado da palavra cinema. Ou ao mesmo tempo, como preferires, eu prefiro ao lado porque foi a primeira imagem que me apareceu, mas desculpa que assim perco-me e eu sei que tens pouco tempo, apesar de já te ter dito que ele é independente de nós. Pensei então que a nossa vida espelha o cinema, num contínuo que não pára, por contraposição àquela nossa fotografia. Porque feliz ou infelizmente, dependendo do conteúdo, o disparo dos neurónios por vezes é tão forte que imprime a fotografia dúzias de vezes, a vida toda condensada num momento sem tempo. Estou extremamente impaciente porque isto de colocar pontuação nas ideias demora, e daqui a duas horas tenho coro e ainda não comi. Ocorreu-me entretanto, e cá está outro advérbio de tempo, que se os espelhos podem funcionar todos ao contrário, talvez o filme lá de fora espelhe o de cá de dentro, e pergunto-me: o que espelhará esta chuva miudinha sobre mim? Coloquei mesmo um ponto de interrogação porque a chuva que cai ainda não é a suficiente para espelhar pontos finais, demora até que a terra assente e fique unida outra vez. É tão bom quando sai aquela chuva de rompante e nos dá a sensação segura duma chuva que sabe o que quer. Digo-te tudo isto num repente, não apenas por causa do tempo e do teu avião, mas para ver se é a pontuação que me impede de chegar ao que quero captar, que é aquele instante exacto em que a terra bate na chuva e eu posso finalmente apertar bem o cinto e dizer, colocando um ponto final no fim da afirmação: aí vou eu outra vez. Ligo-te quando chegar.