Volto em Janeiro, quando o ano começar.
Porque não hoje? Não te reconheço nestes rituais.
Nem eu. Obrigada pelas visitas, passarinho. Prometo que volto, que seria de mim sem ti? Deixo-te o que leio. E hoje, mesmo mesmo antes de dormir, que há um momento breve em que sei que finalmente me irei entregar ao sonho, acontece-te o mesmo? Uma confiança tranquila, rodeada de lençóis e do cobertor pesado, e de todos os sons e dos olhos da gata a fixarem-me, todos os dias me fixa quando me deito, como se também ela estivesse espantada com o espectáculo. Dizia que hoje, ainda hoje e não apenas em Janeiro, guardarei nesse instante a imagem de ti, com os teus lençóis e o teu cobertor e os teus sons e todos os teus bichos, passarinho meu, e com as tuas palavras, que nesse momento serão as mesmas que as minhas, promete-me que sentes as mesmas palavras ao mesmo tempo que eu, apesar de nem teres de prometer, mas promete. E àquela hora, tu sabes qual é a hora, não é quando se ouvem as 12 badaladas, que esse momento é de correria, é já no fim da história, quando ela encontra o sapato. Nesse instante em que quase quase durmo mas ainda não, eu saberei que através das nossas mesmas palavras estarás no meu lençol e no meu cobertor e também nos olhos fixos da minha gata.
Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra.
[…]
Isso que fica aí não são memórias alinhadas. Não têm essa pretensão. São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um acontecimento – e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se desenrolou, interessou-me a cor, um aspecto, uma linha, um quadro, uma figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer – desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas. O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo…
[…]
Há horas em que as coisas nos contemplam, e estão por um fio a comunicar connosco. Às vezes é um nada, um momento de êxtase em que distintamente ouvimos os passos da vida caminhando.
Raul Brandão, excertos de Memórias, 1918
Porque não hoje? Não te reconheço nestes rituais.
Nem eu. Obrigada pelas visitas, passarinho. Prometo que volto, que seria de mim sem ti? Deixo-te o que leio. E hoje, mesmo mesmo antes de dormir, que há um momento breve em que sei que finalmente me irei entregar ao sonho, acontece-te o mesmo? Uma confiança tranquila, rodeada de lençóis e do cobertor pesado, e de todos os sons e dos olhos da gata a fixarem-me, todos os dias me fixa quando me deito, como se também ela estivesse espantada com o espectáculo. Dizia que hoje, ainda hoje e não apenas em Janeiro, guardarei nesse instante a imagem de ti, com os teus lençóis e o teu cobertor e os teus sons e todos os teus bichos, passarinho meu, e com as tuas palavras, que nesse momento serão as mesmas que as minhas, promete-me que sentes as mesmas palavras ao mesmo tempo que eu, apesar de nem teres de prometer, mas promete. E àquela hora, tu sabes qual é a hora, não é quando se ouvem as 12 badaladas, que esse momento é de correria, é já no fim da história, quando ela encontra o sapato. Nesse instante em que quase quase durmo mas ainda não, eu saberei que através das nossas mesmas palavras estarás no meu lençol e no meu cobertor e também nos olhos fixos da minha gata.
Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra.
[…]
Isso que fica aí não são memórias alinhadas. Não têm essa pretensão. São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um acontecimento – e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se desenrolou, interessou-me a cor, um aspecto, uma linha, um quadro, uma figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer – desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas. O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo…
[…]
Há horas em que as coisas nos contemplam, e estão por um fio a comunicar connosco. Às vezes é um nada, um momento de êxtase em que distintamente ouvimos os passos da vida caminhando.
Raul Brandão, excertos de Memórias, 1918