segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Blondina


Menina!

Peter Pan! Oh Peter querido. Passei pelo supermercado, porque me faltava pasta de dentes. Nunca imaginei encontrar-te por aqui. Que saudades.

Reparo que lês a história da Blondina. Advirto-te que derramarás lágrimas, no estado em que te encontras. Que fazes à história?! Porque colas estas imagens de pastas de dentes no meio do diálogo entre a Blondina e o Rei Benigno?

Para lhe dar um pouco de realismo, Peter. Ou talvez mesmo para confundir-me. Sabes como gosto de o fazer. Li algures que tem um efeito terapêutico, bloqueia aquela nossa lógica do hemisfério esquerdo. Peter, sabes que a cara e as mãos são as partes do corpo mais representadas no cérebro?

Não fazia ideia.

E o bolbo raquidiano é responsável pela manutenção das funções involuntárias.

Tais como?

Como a respiração, ou a secreção lacrimal. Olha, mudaram-nos de sítio! Nota que estamos já em minha casa. Diz-me ela que lhe surgem vários contextos, e que como personagens temos apenas de nos adaptar. O que vale é que voas, senão seriam tremendamente difíceis estas mudanças. Pan, suspeito que é o seu hemisfério direito que predomina agora, são aqueles momentos em que lhe custa dar nomes às coisas. Pensando bem, já nem sei bem o teu nome, Peter. Pergunto-me porque me terá posto a ler a Blondina.

Diz-me ela que se quer lembrar de todas as personagens.

Oh Peter, eu sabia, vê tu em que estado pôs ela de repente este supermercado, os livros todos espalhados, a corça branca no meio da carne, o pêlo de arminho nos queijos e os mais belos contos de grimm rodeados de bolachas. Muito gosta ela de bolachas, e vendo bem é uma palavra tão redonda. Peter, aguenta-te na zona dos iogurtes por favor, que eu prometo que te vou buscar no meio de tantos lacticínios. Rebolam os pacotes de leite, e apesar de serem paralelepípedos julgo que ela os pode pôr a rebolar, e eu apenas me pergunto porquê tamanho filme, meu deus, porque terá ela de colocar-nos a nós a sentir desta maneira, será que não imagina como fico cansada no final?! Tudo para que se tranquilize a colocar histórias dentro de histórias e personagens dentro de personagens?! Atenção, eu sou apenas uma menina! E ele é o Peter! Apelo agora à presença da Dra Sininho nesta história, porque eu sinto que o meu bolbo raquidiano poderá tomar conta de mim e eu involuntariamente me autonomizar dela e fazer o que me apetece, que afinal tem sido muito tempo a fazer esta personagem. Mas Peter, aconteça o que acontecer, quero que saibas que sou eu que te amo, não foi apenas ela que me pôs a amar-te. E que aconteça o que acontecer podes estar seguro de que te irei buscar aos iogurtes.


sábado, 17 de outubro de 2009

Azul marinho (clique aqui)

Psiiiiu. Estás a dormir?

Não.

Em que pensas?

Estava a pensar que esta bola de Berlim estava mesmo boa.

Escreves? É tarde.

Sabes que gosto de escrever a estas horas.

É dramático?

Ainda não sei, mas julgo que não.

Mas tens as mãos suadas.

É verdade, mas sabes que não bastam as sensações corporais. A música é de certa forma tranquila.

Dizes isso porque não entendes a letra da canção. E a cor? Qual é a cor?

Talvez azul, mas marinho, como aquele azul da Córsega.

Assim chamas outras personagens para a conversa. E a imagem?

Sabes que é estranho? Porque a imagem é de prédios. A rua vazia, e os prédios cheios de gente, de um lado para o outro de um lado para o outro, agarram nos pratos e nos talheres e há também os fornos cheios de comida quente. E nessa imagem eu estou cá fora e vejo-os a todos, e de repente tenho milhares de olhos. O olho é um órgão extraordinário, não te parece?

Quais são as emoções associadas?

A quantidade de perguntas faz-me mudar de contexto, dra. E tenho de dizer-lhes isso de alguma forma, para que me possam seguir. Gostava de não falar sobre as emoções, ou pelo menos deixá-las para o fim, tenho medo de varrer assim o pré-frontal, e desatar a chorar aqui e inundar-lhe o consultório. Sabia que a composição química das lágrimas muda conforme a razão por que choramos? E se depois elas me invadem, e de certa forma me embalam, e não tenho tempo de voltar ao lugar seguro? Porque tudo isto é muito rápido, e muitas vezes sinto que o tempo cronológico não coincide com o meu. Ainda estou a processar o séc. XVIII e já estamos no XXI. Imagino-me com aqueles vestidos e ainda sem existirem prédios cheios de luzes, quero aqueles fatos mais um pouco, só mais 5 minutos, não me quero deitar já. A imagem agora saltou dra, estão a puxar-me para a frente e eu cravo os pés e dobro os joelhos e faço força para trás e digo ao tempo, que é ele que me está a puxar, digo-lhe que sou lenta. Ele responde-me que deixar-se passar faz parte da sua definição, e tem razão, que eu fui confirmar ao dicionário. Inicio então um novo diálogo com o tempo, porque são eles, os diálogos, que me dão o presente, e eu preciso tanto tanto dele. E das bolas de Berlim e da minha imagem a rir-me no jardim do campo grande, e quando ela aparece é um bocadinho de presente outra vez, e neste caso presente é também uma oferta, ofereço-me essa memória e sinto-a agora, e sentir já são emoções, não ponho pontos para não me perder pelo caminho porque estamos mesmo mesmo quase dentro do sistema límbico apesar de ser através das palavras. Não percebo a letra da canção mas tenho a certeza que ela diz isto que sinto, não poderia ser de outra forma. Ouço-a repetidamente para compor a memória, que às vezes anda descomposta. Só mais 5 minutos dra, que é o tempo de ela tocar, e de chegarmos ao passado no presente. Eu avisei-a de que ia inundar-lhe o consultório.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Esquadros

Boa tarde.

Boa tarde.

Queria uma folha de papel cavalinho, por favor. E um lápis.

Que número, menina?

Queria um lápis para desenhar.

Quer desenhar com traços largos ou mais finos?

Largos, para ver se não me perco em perfeccionismos. No entanto, se usar um traço mais largo talvez tenha de ser mais precisa. Como as palavras, vão entrando umas dentro das outras, o que faz com que a última seja mais abrangente, mas ao mesmo tempo terá de significar exactamente aquilo que eu quero dizer, e nesse sentido é mais fina. Desculpe, estava aqui a pensar, e se calhar é melhor um lápis com um número mais baixo.

Leva um 2B.

Histórias tão cheias que ficam como esta folha de papel cavalinho em branco, embora possa parecer estranho o conceito. De um branco cheio, entendes? Absolutamente cheio de pormenores. Se experimentares e começares a apagar, começarão a aparecer formas. É verdade, bicho! E a certo ponto são já tantas que se torna confuso. Tantos traços, meu deus, e aqui faço um trocadilho entre os traços do lápis e os traços característicos das pessoas. Bombardeios de personagens com as mais variadas formas, e elas surgem todas sempre ao mesmo tempo, todos sabemos que nuns dias o telefone nunca toca e nos outros não pára, cheio de novas informações ou antigas que se actualizam, e nós a dizer para dentro ao universo que afinal pedimos mal, queremos sossego outra vez. Desculpe, também queria uma borracha.

Verde ou branca?

Branca. Tudo branco e sossegado, quietas, ordeno! ou desligo o telefone. Mas elas saltam-me do papel, quase independentes da minha borracha branca branca. Os meus desenhos da escola ficavam sempre todos esborratados, sabes quando o carvão se espalha? porque às vezes sou trapalhona e a minha mão passava sem querer por cima do que já estava feito, e eu depois tentava apagar o esborratado e ficava sempre com menos um bocado da forma original. Pior ainda quando as formas originais eram geométricas, porque se notava mais o sujo. Tem esquadros baratos?

Estão nesta montra. Vou atendendo este senhor enquanto decide.

Então, quando o branco já está muito apagado e a folha de papel cavalinho está quase preta de tanto carvão, começamos de novo a apagar aquelas formas todas que surgiram, como um escultor a retirar pedaços da pedra. Vê, os dois processos são iguais mas com consequências opostas. Será que andaremos sempre nisto vida fora, apagando, apagando, ora o preto ora o branco? Eu adoro, mas é bastante cansativo, e às vezes não sei qual dos processos hei-de escolher. Terei de me calar agora, porque senão esta folha fica muito cheia de caracteres, que aqui é quase o mesmo que dizer letras, há apenas um número pelo meio. E depois eu terei de ir retirando palavras, não imaginas quantas vezes já carreguei no delete durante este tempo todo. Foi tanto tanto tempo que o sr. já atendeu as outras pessoas todas. E eu ainda não me decidi.