quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Memória original

Eu conheci-te há 10 anos, na calle St. Gervasi (abertura). Era Dezembro e estava frio e eu ainda não tinha comido nenhum sonho, porque eu vivia num sítio onde não é tradição comê-los, nem mesmo no natal. Eu tinha de imaginar os sonhos, o que pode até parecer um pleonasmo, mas na verdade não é. Eu pensei em guardar-te no silêncio, mas tive medo que morresses ou que pelo contrário permanecesses demasiado vivo, sabemos ambos que os extremos se tocam. Compreendemos isto quando vamos a uma biblioteca, que está cheia de um silêncio pesado. É curioso imaginar que as bibliotecas estão cheias de palavras silenciadas através da escrita. Cá em casa eu também tenho um armário branco cheio de silêncio, onde normalmente guardo as coisas que são tão importantes que, ou são muito vivas, ou morrem de vez. Então eu pensei que podia escrever-te em vez de te falar, guardando-te antes num outro armário, o das palavras escritas. Quando eu te conheci ainda não tinha descoberto que gostava tanto de escrever, e por isso eu falava muito e de uma forma intempestiva, como um furacão

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sendo que neste texto as falas que te dei vêm marcadas a itálico. Eu acho que escrevo na esperança de chegar à memória original, sem notar que mesmo essa é uma traição à verdade. E o encadeamento das ideias vai ser assim até ao final, pelo menos essa era a minha ideia inicial/original. Eu tenho muitos medos, e um deles é que morras em mim e outros são, por exemplo, de me esquecer das chaves dentro de casa ou de ficar sem palavras ou de trair-me. E eu fico entre a espada e a parede, porque pela lógica as palavras não podem ser simultaneamente a minha verdade e a minha traição, e eu gostava sinceramente de chegar a uma solução para tal problema no final de Dezembro ou mesmo no final deste texto. Quando eu te reconheci, lembro-me de achar que tu tinhas já mais rugas e estava muito calor porque era Junho. E cá, por essa altura, também não se comem sonhos, comem-se melões que se vendem na beira da estrada, o que me faz constatar que isto de conciliar o tempo com o espaço é um problema físico real (outro aparente pleonasmo), e não apenas imaginação minha. Nessa altura eu já falava bem menos e com espaços entre as palavras, talvez por escrever mais ou então por ter comprado, havia pouco tempo, aquele outro armário, o branco. Resolvi escrever-te um bilhete, e se a memória não me trai

Ainda bem que adiei a tua pele estes 10 anos

sendo que neste texto as palavras escritas que te dei vêm também em itálico mas sem travessão. Mas é Dezembro e está frio e cá, no natal, é tradição comer sonhos. Eu pensei guardar-te no silêncio mas tive medo que morresses ou que pelo contrário permanecesses demasiado vivo, ambos sabemos que os extremos se tocam. Compreendemos isto quando vamos a uma biblioteca, que está cheia de um silêncio pesado. É curioso imaginar que os meus armários estão cheios do teu nome silenciado através das palavras escritas. E o encadeamento das ideias neste texto não será já o que imaginei inicialmente/originalmente e também é mentira que nos tenhamos conhecido há tanto tempo na calle St. Gervasi. Mas eu falo cada vez menos e escrever-me terá sido a única forma que arranjei de me perdoar não existires apesar de ter adiado a tua pele


estes 10 anos

já sem itálico e sem travessão. Porque eu tenho muitos medos, e um deles é de morrer em ti e outros são por exemplo de ficar sem silêncio ou de trair-nos com as palavras ou então de me esquecer das chaves dentro de casa

anos

ou mesmo dentro mim (fecho).