sábado, 11 de dezembro de 2010

Infinitos nós

Amor, minha alegria. Este fugaz mas intenso texto tem como principal propósito preencher esta folha de risos nossos. Lembro-me então de apagar-nos a memória, que sabemos que ela é responsável por todos os princípios e por todos os fins. Viver apenas da memória é como cantar a olhar para a partitura, algo de essencial se perde. A história divide-nos, espartilha-nos, estraçalha-nos de novo em pedaços, a nós que somos inteiros no silêncio. Deste modo, ao longo deste texto e no sentido de atingir o objectivo proposto, tento eliminar todas as nossas palavras, roubando-te antes o silêncio branco branco que utilizo para preencher o vazio da folha e onde em seguida posso colocar o nosso riso.

Não esqueço.

Alto! Não vos insurjais, não existem personagens neste texto, que o tempo presente, o único aqui utilizado (salvo um ou outro gerúndio, mas que surge com uma função adverbial), não admite semelhantes divisões. Não esta ou aquela ou passado ou futuro ou sonho ou realidade. Quero tudo, que talvez este seja o último texto deste longo ano que começa em Janeiro e termina em Dezembro. Perco-me a ouvir o som da chuva a bater na calçada (ou será ela mesma que ouço, a chuva?), tic tic tic, e constato que compete com a verdade do riso. De modo que te peço que enquanto me lês imagines esta folha também cheia da verdade da chuva ou do seu som a bater na calçada. Hoje levanto-me, meu amor, tomo o pequeno-almoço, e venho trabalhar. Os dias são tão reais, têm princípios e fins como os objectos que nos rodeiam, como o meu piano ou esta folha onde escrevo, ou mesmo como os nossos corpos. Escrevo-te aqui da prisão, onde todos os dias me tentam ajudar a ser livre, uma tarefa possível mas difícil tendo em conta a grossura das paredes em volta, de tal maneira que escorre água de tanta humidade e do sol que por vezes não entra. Estas paredes são tão realmente grossas, que ilusoriamente nos dividem e nos espartilham e nos estraçalham e ainda nos agrilhoam, que o que é demasiado rígido desune, e nos fazem por vezes esquecer aquilo da verdade, amor. Escrevo-te então, que enquanto assim me expresso não existem dúvidas, apenas constatações que não respondem a nenhuma pergunta. Tic tic tic, como a chuva na calçada, ou como o riso com que ao longo desta história espero que enchamos, não a memória, mas o silêncio da mais completa biblioteca. Estas cinco últimas palavras são tuas, nota que é natural que enquanto caminhamos para o silêncio saltem pedaços de memória. E enfim, trata-se de um texto, além de ser um verdadeiro sonho tenho de imprimir-lhe um pouco de realismo, enchendo-o de palavras e de princípios e de fins e de memórias, afinal tantas, provando-me assim que é possível ter a finitude dos corpos e o silêncio infinito. Termino agora este texto, julgando ter-nos já dado palavras suficientes para podermos apagar a história e enchê-la de silêncio, e em seguida então do nosso riso (e talvez do som que eu ouço e que tu ouves da chuva a bater na calçada?). Que afinal é assim que realmente tudo termina, e que verdadeiramente tudo começa.