domingo, 30 de novembro de 2008

BI

Idade.

30.

Humm. Então diga-me lá.

Precisava de fazer umas análises.

Como assim?

Umas análises ao sangue.

Mas de que se queixa?

Disseram-me que a minha índole era preguiçosa. Queria averiguar isso.

Quem lhe disse?

Alguém. Disse-me que se baseava em factos. E como ando a produzir pouco, gostava de saber se era esse o problema. Ficava resolvido.

Ficava resolvido?

Sim. Se esse é o meu problema, já me posso tratar.

Não existem análises à índole.

Não existem?! Que quer dizer índole?

Carácter. Temperamento. Não é quantificável. E não fazemos análises qualitativas.

E sabe como poderei então averiguar isso?

Terá de auto-analisar-se. Julgo ser a única forma. Ou a mais directa.

Oh!...mas isso é terrível. Posso nunca chegar a conclusão nenhuma.

Será o mais provável, sim.

Mas Dr, eu preciso de me dar um nome. Não aguento viver sem nome. Por favor diga-me de sua justiça sobre a minha índole. Toda a vida me foram dando nomes diferentes para ela. Preciso da opinião de um especialista. Diga-me quem sou por favor. Para a semana vou tirar um novo BI, coisa de que já deveria ter tratado há um ano. Será mais um facto para a história da preguiça? Julgo que não, porque, pensando bem, é um grande passo, e grandes passos necessitam de tempo. E a fotografia tem sempre de mudar. A do BI. Não podemos aceitar uma igual, dizem-me na loja do cidadão, ali nas laranjeiras. Sabemos que foi há pouco tempo, mas a sua cara já não é a mesma. Está outra cidadã, seria uma fraude. De modo que esperei saber a que correspondia a nova cara. E nada. Passou-se o tempo, e continuo uma cara sem nome. Acontece que para a semana…

Não pode adiar? Aproveitava e controlava o seu imediatismo.

O meu imediatismo?

Essa sua necessidade de que tudo seja resolvido no momento.

Ooooh…! O meu imediatismo…! Imediatista e preguiçosa! Mas que conjunto. Dr., e se começar a controlar ou a eliminar esses nomes, fico vazia. Não poderá atribuir-me um nome que me passe a definir positivamente? Queria também algo para manter, para poder eliminar o resto à vontade.

Desculpe, estamos proibidos de o fazer. Há muitos falsos positivos. Para os defeitos, menos mal, pode estar simplesmente a eliminar algo que não tem, e por isso me aventuro. Mas para as qualidades, imagine-se a manter algo que não é...e todos lhe dizemos que tem coisas muito boas. Já a elogiei várias vezes. Não me culpe de não saber quem é. É tarefa sua.

É certo. Eu é que ando perdida com os adjectivos, aqui encafuada. Precisava de uma boa nota, e tenho dificuldade em fazê-lo. Não te vou dar 20 no primeiro período, deixas de trabalhar com a arrogância. Pensas que é tudo assim fácil? Não não não. A vida é dura, minha amiga. No fim do ano, veremos se manténs essas notas. Tens de provar o que vales, tens de provar o que és, sua mimada, sem resistência à frustração, imediatista, preguiçosa, com padrões disfuncionais e sei lá que mais. No fim do ano. No fim. Só mesmo no fim.

sábado, 22 de novembro de 2008

Por me teres obrigado a comer (clique aqui)

Porque pediste esta música?

Não sei bem. Ando a acordar a trauteá-la. Conheces-me, sabes como isto me acontece tantas vezes.

Sim, uma característica tua engraçada. Um traço obsessivo numa cabeça criativa.

Oh…só tu para falares de mim dessa maneira.

Porque te conheço. E ao contrário do que diz o João, o meu traço, também obsessivo, de tanto escolher as palavras, tem a ver com o facto de não te querer reduzir a elas. Não é medo de revelar demais, mas sim de menos.

Não sei se tem a ver com os meus sonhos…Esta escolha.

Sonhos que tens tido?

Não falava desses. Antes uma certa nostalgia de sonhos futuros passados. Com a perfeita consciência de que hoje em dia não fariam sentido, mas sinto uma certa ternura por eles. Passou mais de um ano.

Sim. Estás diferente. De certa forma mais parecida com o que já conheci de ti há mais tempo. Sabes que construímos a trajectória da nossa história desde pequenos. Dão-nos histórias possíveis, dentro de um leque mais ou menos variado. Nichos, ou lugares mais ou menos fixos, com formas também elas mais ou menos fixas de nascer, crescer, lutar, esperar, morrer. É duro constatar que se calhar temos de mudar. As nossas trajectórias. E não é só à conta dos acasos.

Queria agradecer-te por tudo. Um longo e ao mesmo tempo rápido ano para mim. Por me teres acolhido em tua casa naquele dia, e me teres obrigado a comer. Por acreditares tanto em mim. Por me ouvires tantas horas com discursos tão iguais. Por me teres garantido que ia passar sem que ficasse amarga. Por me teres dito que tudo ia correr bem, porque não podia ser de outra maneira. Por me admirares e o dizeres. Pelos emails diários. Por compreenderes o mesmo esqueleto por baixo do farrapo. Por me deixares ajudar-te. Por comentares os meus textos. Por sempre teres achado que o que diziam ser uma fragilidade minha para ti era uma força. És forte e frágil pelas mesmas razões, e não deram conta. Passaram ao lado, não perceberam nada. Inês, Rosa, Maria, Marília, João, António, José era o meu avô, que acabo de me lembrar dele. Imagina que me alertou na véspera, e nós que pensávamos que ele não estaria muito bem. O mais lúcido. Por te rires tanto comigo, e isso é a melhor prenda que me podem dar. Este texto é nostálgico, que é como eu estou hoje. Para não utilizar outros rótulos para estes estados. Não gosto de fazer destes textos diários sentimentais, com música de fundo a alimentar-me as lágrimas. Mas repara, não é tão dramática como o seria há uns anos, e contém esperança. A função auto-terapêutica sobrepõe-se neste caso, e por isso escrevo. Escrevo. Escrevo. Porque também mereço dar-me tréguas. Porque preciso de ir dormir. Porque já passou mais de um ano.

domingo, 9 de novembro de 2008

Desencontros opacos

Esse livro não é teu.

Como?

O livro a fechar. Não é teu, acho que me interpretaste mal. Não estava a falar de ti. Vim para cá a pensar nestes equívocos. Por vezes a transparência é impossível. Quero tanto clarificar esta cabeça.

Andamos todos assim.

Nem todos, mas bastantes, sim. Esta pressão, esta tensão, esta urgência. Desculpa ter ido buscar estas palavras, só agora dei conta que são repetidas de outro contexto. Somos assim, sempre a repetir-nos, sempre a repetir-nos. Animais de hábitos. Ter consciência de alguns deles pode-nos fazer conseguir mudar.

Era bom este filme.

Era. Tantos rodeios. Pensei várias vezes antes de ser explícita, e a Dolly Bell a insinuar-se no ecrã, e as torradas com queijo, e a ternura por alguém que esteve lá, na altura certa, no momento certo. Acho que é o que procuramos todos. Já viste que a relação com os terapeutas não é senão isso? Alguém preocupado connosco durante uma hora. Uma reprodução do que procuramos. Andava bem sozinha, Raul. E juro-te que esta aproximação não foi deliberada ou estratégica. Dizem-me em sessão que mudei tanto, como conseguiu tomar essa decisão em prol de um longo prazo mais adaptado, e eu que sim, que contente que estou com o facto deste hábito, ou rotina, ou padrão ter sido cortado. Pena que tenha sido contigo, Raul. E depois não é que é o Raul que me telefona e se preocupa? Um mistério. E tudo ficou repentinamente mais tranquilo nessa nossa relação, nesse dia, nessa altura. Um acaso exterior, uma catástrofe, uma desgraça. Acho que me mudou o comportamento com ele, e ele comigo, e cá está o famoso “nós” das aulas do último ano. E a verdade é que estava a precisar que me dessem uma torrada com queijo. No livro que tenho a fechar esqueceram-se de me dar torradas. Ou não podiam, ou eu não as soube receber, não quero vitimizar-me. Sim, estou a dirigir-me a ti.

A mim?

Não, isto são devaneios meus, bem sabes que as personagens podem ir mudando. Melhor, elas são quase sempre várias. O que acontece é que algumas vezes isso se torna mais explícito do que outras. Estranho é que quando o conteúdo é mais sentido, e, parece-me até, mais real, normalmente perde-se a lógica. Não sejas narcísico, este texto não é sobre ti.

Narcísica és tu, que te escreves a achar que alguém te sente. Que sente contigo. Já devias saber que isso é impossível.

Pois é. O que me perturbou verdadeiramente estes dias foi a constatação, mais uma vez, dessa solidão. E de como o mundo está do avesso. E de como nos podemos perder, todos, no meio desse avesso. E de como se podem formar angústias, ou vazios, em espaços aparentemente tão cheios, tão cheios tão cheios que começam a perder o sentido. E ele até é simples. Gosto muito de ti. Desculpa ter-me esquecido tantas vezes de o dizer.

domingo, 2 de novembro de 2008

Reflecting Team


Estão cá há dois anos. Não podemos fazer mais do mesmo.

É o tempo deles. Podem demorar muito tempo até mudar. Há personalidades muito complicadas.

Não sei o que isso quer dizer.

Não me digas que não sentes que existem problemas mais complicados do que outros.

Claro que sinto. Simplesmente porque eu não os sei resolver, ou ajudar a resolver. Parecem-me sempre defesas de quem não sabe o que fazer. Resistências dos clientes, dizem. Porque não resistências nossas? Não estou a saber sair deste buraco. É simples.

Então com o que trabalhas?

Com o que me trazem. A leitura centrada no texto. Claro que tenho uma leitura própria, minha. Afinal é para isso que aqui estão. Mas nada me leva a crer que seja mais verdadeira ou mais profunda do que qualquer outra. E qual seria o critério?

Para quê?

Para saberes que lá chegaste. À verdade. E de que te serve? Ou a eles? Há dois anos que tentas entender profundamente o que se passa ali. Por trás. Talvez interesse mais perceber o que se passa aqui. O que já por si é bastante complicado. Já reparaste que das duas vezes que abanaste houve mudanças? Parece-me um feito mais interessante do que tecer considerações sobre o grau de espiritualidade dele.

Eu não te entendo. Uma das tuas grelhas de análise é o tipo de processo narrativo. Parece que um aumento da reflexividade está associado ao sucesso da terapia. Não é isso um modelo de análise como outro qualquer? Apenas mudam as palavras.

Agora já és tu mesma a criticar-te, Rosa. Acho bem que o faças, pensam que estás em casa sem fazer nada, sem fazer nada. Escreve Rosa, escreve! Há uma hora nessa posição invertida, não sei como aguentas tanto tempo a pensar no mesmo assunto. Que cansaço. É uma grelha de análise do discurso. E as categorias surgiram-me do próprio texto. Analiso a linha que aparece, não leio entrelinhas.

Nunca é só do próprio texto. És sempre afectada por conceitos. E um conceito é sempre teórico. A linguagem é apenas linguagem, ainda que descritiva e que não pretenda evocar nada mais que o facto. Já reparaste que às vezes descrever tranquiliza? Porque será? As explicações que dás são dadas pela própria lógica linguística, e não pela verdade. Ou pelo menos pela verdade que imaginas.

Esse será um dos problemas. São pessoas que ali estão, do outro lado do espelho. Acho que também nos compete a nós ter cuidado. Cuidado com as imitações.